quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

26. E Riobaldo fala sobre a pressa



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 26)


Riobaldo e Diadorim estão agora junto ao bando de Sô Candelário, homem dos mais valentes.

“Esse era alto, trigueiro azul, quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o Hermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para enfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo.”

E juntos todos vão ao encontro do grande líder, Joca Ramiro. E juntos todos irão para a guerra. Com Joca Ramiro a frente a vitoria é certa.

“Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas armas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o fim da guerra!”

Mas Sô Candelário, o mais valente dos valentes, não poderá ir direto ao calor da batalha. Joca Ramiro não quer.

““Só Candelário queria ir também, mas teve de aceitar ordem de ficar...” – Diadorim me explicou. Segundo disse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas.”"

Sô Candelário trazia em si a desmedida da valentia. E Joca Ramiro disso sabia. Riobaldo explica.

“Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo o senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai é que o homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é que decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios – acordava com o propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Só Candelário é o que mais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.”

A certeza da morte terrível, da doença estigmatizante, fazia com que Sô Candelário se tornasse um homem imprudente. A pressa o tomava ( E Guimarães Rosa, no seu livro anterior, “Sagarana”, já dissera que medo e pressa são praticamente iguais) e ele avançava sem cuidado na direção daquilo que julgava ser seu fim inevitável. Toda pressa traz em si bastante certeza. E nos cega para a realidade. Com pressa não conseguimos esperar que ela se manifeste, se revele por inteiro. E acabamos precipitados.

Joca Ramiro, em sua grande sabedoria, julga por bem não levar Sô Candelário para a frente da guerra.

Temos em nossa cultura outro exemplo de pressa levando à falsa consciência e à decisão equivocada.

Trata-se do autor da frase abaixo, a nós presenteada por Públio Ataíde.

‎"Tenho medo da morte e da dor, mas convivo bem com isso. O medo me fascina."
Ayrton Senna

Em trabalho sobre a pressa, analiso os acontecimentos que culminaram com seu falecimento.

“Senna foi eleito recentemente o maior piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de carros.

Sua morte trágica, ocorrida durante a prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.

Naquele ano muitas mudanças foram realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.

As queixas de que os carros estavam mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão rápidos demais e difíceis de controlar”.

No primeiro dia de treinos Senna ficou transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na aceleração de seu carro e  decola sobre uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.

No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15 minutos.

Após 12 anos sem um acidente fatal na formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de semana Senna também morreria.

A morte de Ratzenberger levou Senna a liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse: “Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.

Pouco antes da corrida, na hora da concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.

Por que Senna mudou de opinião e decidiu correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite já tinha mudado de opinião e decidido correr.

Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos concordou em correr.

Emerson, ameaçado até de exclusão definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas instantaneamente, e deixou muitos feridos.

Neste caso os fatos posteriores deram razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua decisão.

Ayrton Senna já não era tão moço, tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.

Alguns desses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.

Sabemos hoje que o principal elemento causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians. Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.

E Senna percebeu os absurdos, tomou a decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de opinião.

Conan Doyle, através de seu famoso personagem Sherlock Holmes, no  romance “A cidade do medo”,  diz de “Um homem que não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não pode falhar está condenado à pressa e ao medo.  O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou errôneo.

É possível ultrapassar quem tem esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe reconhecer o que sabe e o que não sabe?”

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

EMILY DICKINSON

A dor - tem um elemento em branco.
Desde quando dói
Não se recorda, nem se houve tempo
em que ela não foi.

Seu futuro - só ela mesma;
Seu infinito contendo
O seu passado - que deixa ver
Novos períodos - doendo.  




Entre a forma da vida e a vida
a distinção é definida
Como o licor entre os lábios
e o licor no licoreiro.
Para guardar, este é um primor,
Mas para a ânsia do êxtase
Licor nos lábios é melhor -
eu sei porque provei.  





Morrer por ti seria pouco -
P’ra os gregos a morte era fácil
Viver, amado, é de mais preço -
E é o que te ofereço.    



Na dor eu passo a vau -
charcos inteiros -
Questão de hábito.
Mas um leve esbarro de alegria
Me embaralha os pés,
Perco o equilíbrio - ébria.
Que nenhum seixo se ria -
Bebida inédita -
É só isto!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

E Riobaldo fala da desconfiança


 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 25).


E Diadorim finalmente reaparece.

“Demorei bom estado, sozinho, em beira d’água, escutei o fife dum pássaro: sabiá ou saci. De repente, dei fé, e avistei: era Diadorim que chegando, ele já parava perto de mim. Ele mesmo me disse, com o sorriso sentido:
– “Como passou, Riobaldo? Não está contente por me ver?”
A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo. Ao que, pela pancada do meu coração.”

Riobaldo fica feliz, é um milagre que toca seu coração. Mas se contém, e começa a desconfiar.

“Aí, mas um resto de dúvida: a inteira dúvida, que me embaraçava real, em a minha satisfação. Eu era o que tinha, ele o que devia. Retente, então, permaneci; não fiz mostra nenhuma. Esperei as primeiras palavras dele. Mais falasse; retardei, limpei a goela.
– “A pois. Por onde andou, se mal pergunto?” – aí falei. Aquela amizade pontual, escolhida para toda a vida, dita a minha nos grandes olhos...”

Diadorim não se abala com a paranoia de Riobaldo. E ele não teme, nada fez de errado. E age naturalmente.

“– “Você também não está bom de saúde, Riobaldo, estou vendo. Você derradeiramente não tem passado bem?”
– “Vivendo minha sorte, com lutas e guerras!”
Ao que Diadorim me deu a mão, que malamal aceitei. E ele disse de contar. Segundo tinha procurado aqueles dias sozinho, recolhido nas brenhas, para se tratar dum ferimento, tiro que pegara na perna dele, perto do joelho, sido só de raspão.”

Riobaldo permanece desconfiado, suspeitando.

“Menos entendi. A real que estando ofendido, por que era que não havia de vir para o meio da gente, para receber ajuda e ter melhor cura? Doente não foge para um recanto, ou mato, solitário consigo, feito bicho faz. Aquilo podia não ser verdade? Afiguro, aí bem que criei suspeitas: aonde Diadorim não teria andado ido, e que feia ação para aprontar, com parte na fingida estória?”

Mas Riobaldo não consegue não acreditar. A naturalidade e cordialidade (cordialidade aqui no seu sentido original: cordos, no latim, coração. Cordial é aquele que age com o coração, natural, verdadeiramente espontâneo) se impõe e a verdade penetra em Riobaldo, até então tentando manter-se impermeável.

“As incertezas que tive, que não tive. Assaz ele falava assim afetuoso, tão sem outras asas; e os olhos, de ver e de mostrar, de querer bem, não consentiam de quadrar nenhum disfarce. Magro ele estava, quasso, empalidecido muito, até ainda um pouco mancava. Que vida penosa não era capaz de ter levado, tantos dias, sem o auxílio de ninguém, tratando o machucado com emplastros de raízes e folhas, comendo o quê? Assunto de fome e toda sorte de míngua devia de ter penado. E de repente eu estava gostando dele, num descomum, gostando ainda mais do que antes, com meu coração nos pés, por pisável; e dele o tempo todo eu tinha gostado. Amor que amei – daí então acreditei. A pois, o que sempre não é assim?
Além do que era sazão de sentimento sereno: arte que a vida mais regateia. A vida não dá demora em nada. Nos seguintes, logo tornamos para tornar em guerra, com assanhamentos. De formas que perdi o semelhar de tantos manejos e movimentos e a certa razão das ordens que a gente cumpria. Mas fui me endurecendo às pressas, no fazer meu particípio de jagunço, fiquei caminhadiço. Agora eu tinha Diadorim assim perto de afeto, o que ainda valia mais no meio desses perigos de fato. Sendo que a sorte também prevalecia do nosso lado, aí vi: a morte é para os que morrem. Será?”

Nas situações onde a comunicação encontra-se obstruída ou parece direcionar-se para o conflito, três atitudes são encontradas.

A primeira é chamada de atitude passivo-agressiva. Nesta o medo do conflito impera e todos os esforços são no sentido de evitá-lo. Mente-se, combinam-se coisas que se sabe de antemão que não serão feitas, fala-se mal por trás, mas pela frente em tudo se concorda, mas nada do acordado será feito. É, de longe, a atitude mais comum. Cerca de 80% das pessoas portam-se desta forma.

A segunda é a atitude agressiva. Essas pessoas podem até comportar-se de maneira passivo-agressiva inicialmente, mas logo perdem a cabeça e partem para o ataque. Xingam, esbravejam ou se retiram de maneira afrontosa. Há o senso comum de que os agressivos pelo menos “botam para fora” e por isso se desgastariam menos que os passivo-agressivos, que engolem qualquer coisa pra evitar um desentendimento. Ledo engano. Os índices de estresse e até de ataques cardíacos dos dois grupos são semelhantes. De 10 a 15 % das pessoas pertencem a esse grupo.

Esses dois tipos anteriores normalmente não conseguem desobstruir a comunicação.

Por fim, há a terceira atitude, os assertivos. Normalmente começam a tentar comunicar com um elogio verdadeiro, ressaltando algum aspecto positivo do interlocutor ou da relação. Em seguida falam da dificuldade em questão, de maneira clara e precisa, sem procurar culpados pelo problema, mas sim procurando saídas e soluções. O núcleo dessa comunicação, apesar de se caracterizar pela precisão nos argumentos, é emocional. É emocional no gestual do elogio verdadeiro: o olhar, o tom de voz, os gestos e atitudes, tal como na estória anterior de Diadorim, não deixam dúvidas que se está falando a verdade.  Mas também costuma ser emocional no conteúdo, quem comunica de maneira assertiva costuma dizer o que está sentindo no momento. Talvez o faça intuitivamente, sabendo que não cabe contestação quando dizemos que nos sentimos tristes ou frustrados frente a tal situação. Os assertivos não costumam passar de 5% das pessoas.

Mas a boa notícia é que se pode aprender a ser assertivo.

Eu chamava a comunicação assertiva, antes de descobrir esse conceito, de comunicação surpreendente. O interlocutor espera que venha um inimigo e esse não aparece. E nessa surpresa a brecha comunicativa acaba por se revelar.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Alceu Amoroso Lima

Crônica do JB, de 26 de Fevereiro de 1982:
"Não vivemos para sofrer, mas para superar o sofrimento. Não vivemos para para amar a morte, mas para transformá-la em um constante desafio à vida. Nisso está o perigo e a dignidade de viver. A vida sem a morte e sem a alegria de viver seria uma caricatura da vida. Não temos apenas o direito à alegria, mas o dever da alegria. Não temos apenas o direito de lutar contra o sofrimento, a miséria, a opressão e a morte, mas o dever de travar esse diálogo para alcançar uma vitória. Mas a única vitória que podemos ter contra a morte é que ela não nos impeça de amar a vida. Não é fácil. Porque tudo é mistério."

sábado, 15 de dezembro de 2012

E Riobaldo fala da raiva e da soberania


 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 24)


Diadorim ainda demora e Riobaldo fica com raiva. E seus companheiros percebem que ele não está bem.

“No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença – e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto – inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas. Lembro que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz – com vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso.”

Uns dizem que foi Dom Miguel de Unamuno que, ao receber no rosto o resto do vinho que estava no copo do seu interlocutor que, raivoso por não ter mais argumentos para o debate, resolveu arremessar a bebida na cara do grande filósofo, respondeu dizendo algo do tipo:

- Tá bom. O vinho já veio. Excelente, tal como o meu. Mas, e o argumento? Esse não vem? Quer dizer que você admite mesmo que não tem como defender o que dizia antes?

Outros dizem que foi outra pessoa que fez isso. E alguns dizem que essa história é um tipo de lenda. Mas de qualquer forma teria sido muito útil num debate Russo, no qual o notoriamente ensandecido candidato de direita, ao se ver sem argumentos, arremessou o seu suco de laranja no rosto do adversário. Este, não sendo nenhum Unamuno, achou por bem fazer o mesmo e arremessou de volta o seu próprio suco. E os dois candidatos pularam um no pescoço do outro enquanto a versão russa do Jô Soares tentava desesperadamente apartar a briga.

Qual não foi a oportunidade perdida pelo adversário do direitista enlouquecido? Ao menos se ele conhecesse a narrativa anterior... Talvez tivesse tido a presença de espírito de lamber o suco que escorria em seu rosto, dizer que estava excelente, perguntar se o argumento não viria mesmo... E se virar para a camera da TV, dizendo:

- Algum de vocês ainda cogita votar nesse homem? É para esse ser descontrolado que vocês pretendem entregar a mala com o botão das bombas nucleares? Ele tem a mínima condição de governar alguma coisa?

E seria a glória.

Riobaldo nos mostra que sentir raiva é ser manipulado, é deixar alguém governar a ideia e o sentir da gente. É fazer o que o outro quer que a gente faça.

E é falta de soberania.

Um marido me dizia de seu espanto e  dor ao perceber a esposa tomada pela raiva e decidida pela separação. Disse a ele que se ela estava com muita raiva, isso não era sinal de força, mas de fragilidade. Que ela se apoiava em sua raiva para arrumar um jeito de ter certeza que o melhor era separar-se. Mas que toda essa raiva indicava que ela estava tomada por dúvidas. Se ela estivesse realmente segura de sua decisão de acabar com o casamento não teria tanta raiva. Teria é mais dor, sofrimento e tristeza de ver tudo que tentou construir, ruir. 

A raiva é péssima conselheira.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Octávio Paz


“Quando os virtuosos - os filósofos, os que acreditam que sabem o que é bom e o que é mal - tomam o poder, instauram a tirania mais insuportável: a dos justos.”

Octávio Paz, citando Chuang-Tzu.

O trecho acima foi retirado da matéria "Um chinês contra a tirania" publicada na Folha de São Paulo, em 21 de abril de 1988, de autoria de Octávio Paz.

"Chuang-Tzu ataca os moralistas. O arquétipo do moralista é Confúcio. Sua moral é a do equilíbrio social; seu fundamento é a autoridade dos seis livros clássicos, depositários do saber de uma mítica idade de ouro em que reinavam a virtude e a piedade filial. A virtude (jen) era concebida como um composto de benevolência, retidão e justiça, encarnação ao culto do imperador e dos antepassados. A ação do sábio, essencialmente política, consistia em preservar a herança do passado e, assim, manter o equilíbrio social. Este, por sua vez, era só o reflexo da ordem cósmica. Cosmologia política. Nós, em espanhol, temos uma palavra que da uma certa idéia do termo chinês: fidalguia. Mas o fidalgo é um cavalheiro; venera o passado, mas não vê nele um principio cósmico nem uma ordem fundada no movimento da natureza. O discípulo de Confúcio é um mandarim: um letrado, um funcionário e um pai de família.
O caráter utilitário e conservador da filosofia de Confúcio, seu respeito supersticioso pelos livros clássicos, seu culto à lei e, sobretudo, sua moral feita de prêmios e castigos, eram tendências que inspiravam repugnância a um filósofo-poeta como Chuang -Tzu. Sua crítica à moral foi também uma crítica ao Estado e ao que comumente se chama o bem e o mal. Quando os virtuosos -os filósofos, os que acreditam que sabem o que é bom e o que é mal- tomam o poder, instauram a tirania mais insuportável: a dos justos. O reino dos filósofos, nos diz Chuang-Tzu, se transforma fatalmente em despotismo e terror. Frente a essa sociedade de justos e criminosos, de leis e castigos, Chuang-Tzu postula uma comunidade de ermitãos e de gente simples. A sociedade de sábios rústicos. Nela não há governo nem tribunais nem técnica; ninguém leu um livro, ninguém quer ganhar mais do que o necessário, ninguém teme a morte porque ninguém ninguém pede nada à vida. A lei do céu, a lei natural, rege os homens como rege a mudança das estações. A sociedade de Confúcio, imperfeita como todo ser humano, se realizou e se converteu no ideário e no padrão ideal de um império que durou 2.000 anos. A sociedade de Lao-Tzu e de Chuang-Tzu é irrealizável, mas a crítica que os dois fazem à civilização merecem a nossa simpatia. Nossa época ama o poder, adora o êxito, a fama, a eficácia, a utilidade e sacrifica todos os seus ídolos. É consolador saber que, há 2.000 anos, alguém pregava o contrário: a escuridão, a insegurança, e a ignorância, ou seja, a sabedoria e o não o conhecimento.
Na terceira seção procurei agrupar alguns textos sobre o que poderia ser chamado o homem perfeito. O sábio, o santo, é aquele que está em relação, em contato, com os poderes naturais. O sábio realiza milagres porque é um ser em estado natural e só a natureza é quem realiza milagres. Mas é melhor ceder a palavra a Chuang-Tzu."

O DIALÉTICO
Utilidade da inutilidade
Hui-Tzu disse a Chuang-Tzu: "Seus ensinamentos não tem nenhum valor prático". Chuang-Tzu respondeu: "Só os que conhecem o valor do inútil pode falar do que é útil. A terra sobre a qual pisamos é imensa, mas essa imensidão não tem valor prático: a única coisa que precisamos para caminhar é o espaço que cobre as nossas plantas. Suponha que alguém perfura o solo em que pisamos, até cavar um enorme abismo que chegasse até a Fonte Amarela: teriam algum valor os dois pedaços de terra sobre os quais se apóiam nossos pés?". Hui-Tzu retrucou: "Realmente seriam inúteis". O mestre concluiu: "Logo, é evidente a utilidade da inutilidade."

Sobre a linguagem
"Vejamos o que acontece com as palavras", disse Chuang-Tzu, parodiando os lógicos e dialéticos. "Não sei quais entre elas estão em relação direta com a realidade que pretendem nomear e quais não estão. Se algumas estivessem e outras não, pode concluir-se que as primeiras seriam indistinguíveis das últimas. A título de prova, direi algumas palavras: se houve um princípio, houve um tempo anterior ao princípio do princípio, em consequência, houve um tempo anterior ao tempo anterior ao princípio, que por sua vez... Se há ser, há o não ser; se houve um tempo antes do ser começar a ser, também houve um tempo antes do tempo antes do não-ser começar a ser.... poderia continuar assim, quando nem sequer sei com certeza se o ser é o que é, e o não-ser é o que não é. Dessa maneira continuaríamos até chegar ao ponto em que um matemático -para não chegar a uma pessoa comum e corrente como eu- teria dificuldade em seguir-nos.






Por fim, lembrei-me deste texto, de autor desconhecido:

“Julgar é o esporte predileto das pessoas honestas. Faz com que se sintam justas e demarquem um nítido limite entre os inocentes e os culpados. Confesso que este jogo não me tenta.”




23. E Riobaldo sente ciúmes de Diadorim




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”).



E Riobaldo termina de escutar a estória de Maria Mutema, sobre a qual não falará mais, e encontra colegas de bando chegando ao acampamento. E pergunta sobre Diadorim. Eles contam que ele mandou recado para Riobaldo, que tinha que fazer umas coisas, por poucos dias, mas que em breve retornaria.

Riobaldo reluta em acreditar que Diadorim fosse a algum lugar sem ele. E sente dor.

“Aí, ai, oi, espécie de dor em meus cantos, o senhor sabe. Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o amigo? Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia. Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro. Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim de tenção me largava lá sem uma palavra própria da boca, sem um abraço, sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo por conta da amizade! Acho que me escabreei. De sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre de estupor. Foi assim.”

E se passaram 11 dias. E a guerra continuou. Mas Riobaldo nem se anima a contar direito. Foram duras batalhas e muitos, muitos tiros.  

E continua sentindo falta de Diadorim.

“Vir voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudando em raiva falsa a falta que Diadorim me fazia. Aí, curti amargos. Por me ver casca em chão, que é o figurado de desprezo, e mais tudo o que em ocasiões dessas se sente, conforme o senhor decerto conhece e sabe. Mas o pior era o que eu mesmo mais sentia: feito se do íntimo meu tivessem tirado o esteio-mor, pé-decasa. E, conforme sempre se dá, segundo se está assim em calibre de cão, e malquerente, repuxei ideias. Me alembrei do que tinha soprado em intriga o Antenor, e dei razão à cisma dele: quem sabe, mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a gente se acabar ali, na má guerra, em sertão plano? E então Diadorim disso sabia, estava no enredo, agora tinha ido para junto de Joca Ramiro – que era a única pessoa que ele bastantemente prezava? Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspi três vezes forte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem como eu não é todo capaz de guardar a parte de amor, em desde que recebe muitas ofensas de desdém. Só que, depois, o que há, é a alma assim meio adoecida. Digo, fiquei lazo.”

E aí está Riobaldo, prostrado e infeliz, a imaginar que Diadorim o abandonou, fugiu dos riscos da batalha, o deixou para trás sem nenhum cuidado ou consideração. Desconfiado, Riobaldo começa a pensar que Diadorim foi para junto do chefe maior, Joca Ramiro.

Na desconfiança o desconfiado não acredita no amor. E como não acredita no amor, começa a pensar em várias hipóteses para confirmar sua certeza: abandono, traição, medo, fuga... Mas em todas o mesmo centro se revela: ele não me amava. Mas esse centro em seu próprio centro tem um núcleo mais profundo: eu não sou amável, não é possível alguém realmente gostar de mim. E tudo que vejo, tudo que penso, tudo que sinto, reflete a inexorável certeza, mesmo que muito disfarçada: eu sabia, ele acabaria se afastando de mim, pois não trago em mim as condições para ser amado verdadeiramente.

Certo conhecido estava prestes a se casar. Mas as crises de ciúmes o atormentavam com tal força que o matrimônio estava ameaçado. Essas crises tinham um foco principal: a noiva, no passado, ficara com um conhecido de turma, que era uma das piores pessoas que o noivo conhecia, e que o atormentara com crueldade durante a adolescência. Sempre que esse fato reaparecia – uma foto antiga, a lembrança de uma viagem comum – as crises de ciúmes eram terríveis e desesperadoras. Ensinei a ele a menor oração do mundo: sempre que algo despertasse sua desconfiança e ele se visse prisioneiro deste ciúme desesperado, deveria rezá-la, repetidamente. Um dia a noiva, ao chegar a casa o encontra sentado, diante de uma foto antiga da turma, na qual o famigerado ex aparecia. E o noivo repetia: “eu sou amável, eu sou amável, eu sou amável...”.

Se não acreditamos nisso, tudo acaba por ruir. As desconfianças, baseadas em sinais insuficientes, assumem condição de verdades, e provocam o inexorável rompimento. É um erro tentar provar, neste contexto, que se ama. Mais cedo ou mais tarde acaba-se desistindo, pois o ciumento não acredita no amor e só enxerga os sinais fictícios de desamor. E, por fim, o ciumento ainda acusará: "Tá vendo, eu sabia que você não me amava". Mas, na verdade, ele mesmo é que terá provocado o rompimento, num tipo de auto-exclusão. 

“Amai o próximo como a ti mesmo” traz em si essa verdade: sem o amor a si mesmo não é possível amar a ninguém. Não posso distribuir o que não tenho.

sábado, 8 de dezembro de 2012

E Riobaldo não comenta a estória de Maria Mutema



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 22)

E Riobaldo escuta a estória de Maria Mutema e nada comenta sobre ela. Em todo o restante do livro o nome Mutema não aparece mais. E esse conto dentro do romance reúne em si  muito do que o romance diz como um todo.

Para quem ficou com preguiça de ler na postagem anterior o trecho-conto todo, vai aqui um resumo:

Maria Mutema vivia num lugarejo qualquer e em certo amanhecer seu marido está morto, na cama. Ele é enterrado e, algum tempo depois, a viúva Mutema dá de ir sempre à igreja, confessando-se a cada 3 dias. O padre da cidade dá claros e progressivos sinais de irritação e indisposição de ouvir Mutema em confissão. Ela insiste em confessar-se frequentemente. O padre Ponte vai definhando acaba por morrer e, após isso, Mutema deixa de ir à igreja. Tempos depois aparecem na cidadezinha os padres missionários, que iam pelas cidades rezando, casando, batizando, resolvendo as pendências. Na missa final, a mais importante, bem na hora do “Salve Rainha”, Mutema adentra na igreja. O padre estrangeiro, que conduzia a cerimônia, engasga e quase para a oração no meio, o que é proibido. Mas recupera-se, termina-a e de pronto fala firme: que essa que acabou de entrar saia já, com seus “maus segredos”. E que, se quiser se confessar que vá à entrada do cemitério, que é lá que ele irá ouvi-la, lá “onde estão dois defuntos enterrados”.

Mutema cai de joelhos e confessa, ali mesmo na igreja, que matou sim, matou o marido quando este dormia, jogando chumbo derretido em seu ouvido, sem motivo nenhum, e depois, na igreja, resolveu falsear, dizer ao padre Ponte que matou por estar apaixonada por ele. Ele acreditou, foi se desgostando e acabou morrendo.

E ela perde perdão, vai presa e, de ”tão pronunciado sofrer”, o povo começou a achar que ela estava ficando santa.

Maria Mutema matou seu marido sem que nem porque. Matou. Raiva não tinha, motivo não havia. Nem sabia porque. Depois matou padre Ponte da mesma maneira. Enjoou dele. E foi tomando gosto em vê-lo em definhando, adoecendo, na medida em que "confirmava o falso", que mentia dizendo que tinha matado porque gostava dele. Mas motivo, por que, causa clara? Não havia.

Maria Mutema: seu nome indica mudez. Indica que não há o que falar, por se viver no vazio, na falta de sentido. E é sem sentido mesmo e sem motivo nenhum que mata o marido. A violência pura, gratuita, sem motivação. Talvez seja mesmo esse o maior terror: a junção da violência com a falta de sentido; a máxima negação do outro, chegando mesmo a sua eliminação física e o máximo distanciamento de qualquer significado ou vínculo.

Mutema era mulher que não ria. Não há possibilidade de graça onde não há sentido algum. A vida vazia enjoa, entedia, desumaniza. E ela se torna “Esse lenho seco”, nada brota dali, nada de novo surge dali.

Há a mesma imagem nos dois crimes de Maria Mutema: curiosamente, a mulher muda mata pelo canal auditivo. Introduz por essa via o chumbo derretido que matará seu marido; introduz por essa mesma via a maledicências, o falso, que irá matar o padre Ponte.

Nos dois casos, a transformação do móvel no fixo. O chumbo se solidifica dentro do crânio e produz um som ao ser sacudido, comprovando o crime. O falso se solidifica em certeza dentro da cabeça do padre Ponte e acaba provocando a sua morte.

Padre Ponte acreditou na mentira dita por Mutema. Aceitou como verdade por ser preso a estigmas, porque "Uma pecha ele tinha: ele relaxava". Pecha, palavra antiga, remete a balda, defeito e tacha, e estas, por sua vez, remetem a falha, falta, podre, mancha, nodoa, erro, imperfeição e vício. Padre Ponte possuía uma crença a respeito de si mesmo: era um padre imperfeito, amigado e com filhos. Preso no seu pressuposto de culpa, no seu estigma que ele sentia como uma forma de inferioridade, preso na auto-referência, acreditou no Maria Mutema lhe disse. Aparentemente eram segredos aprisionadores, na verossimilhança eram segredos de confissão, mas em verdade se tratava de confirmar a mentira. Como disse Guimarães Rosa, "maus segredos". E estes "maus segredos" emudeciam pela vergonha e pelo receio da estigmatização. Calaram fundo e aprisionaram. Maria Mutema foi precisa: atirou no alvo certo. Como o padre já tinha o estigma de ser amigado o dito por Maria Mutema era verossímil, e padre Ponte "caiu".

É a certeza imutável matando, destruindo o movimento e a mudança característicos do que é vivo. É aqui o núcleo do romance: Riobaldo, o homem das incertezas e das dúvidas, do medo e da angústia, busca falsa solução para sua aflição, seja no pacto para perder o medo e adquirir coragem, seja na aproximação com Diadorim, no afã de conseguir sua coragem, apresentada como perfeita, sem nenhum medo, fechada na ideia e no couro. E aí está sua perdição, acaba por não ver o sentido maior que diante de si despontava, o seu amor por Diadorim, que morre, outra vítima das certezas imutáveis.

O padre estrangeiro descobriu tudo. Curioso que o tema do sortilégio foi tratado no romance um pouco antes. O fato de ser um padre estrangeiro parece indicar que somente um olhar de fora, um olhar mais limpo e menos contaminado pelos estereótipos, é que poderia ver o que acontecia com clareza.

A estória de Maria Mutema é um conto plantado dentro do livro de Guimarães Rosa. Riobaldo, guerreando e atormentado com dúvidas, tenta conversar com Joe Bexiguento, jagunço como ele. De antemão Riobaldo julga que seu companheiro de guerra é homem de ideias curtas. Como que uma pessoa assim teria o que dizer sobre suas inquietações? Mas Guimarães Rosa mostra que a verdade pode sair da boca de qualquer um, e faz Joe narrar uma história sobre o bem e o mal, sobre Deus e o Diabo, sobre a culpa e o perdão, sobre como é difícil separar as coisas em compartimentos estanques. Uma narrativa onde não julga as personagens, mas conta o que ocorreu. Deixa que Riobaldo reflita e tire suas conclusões, não fechando os sentidos de sua história. E Riobaldo leva o livro todo fazendo estas reflexões.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Otto Lara Resende


“Paulo morreu. Não, não estamos preparados. Confuso sentimento de que era preciso ter feito alguma coisa. Sim, era previsível. Mas não precisava ser irreparável”

Otto Lara Resende, ao receber o telefonema avisando da morte de seu grande amigo, Paulo Mendes Campos, já há muito com sérios problemas com a bebida.

E Riobaldo escuta a estória de Maria Mutema



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 21)

A história de Maria Mutema e Padre Ponte é tão importante neste romance que merecemos lê-la na integra. Então, aqui vai...

“Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.

Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola – se dizia – só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.

O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bemcriados e bonitinhos, eram “os meninos da Maria do Padre”. E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santosóleos.

Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.

E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.

Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.

Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?

Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em meio – em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçado, deu um soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:

– “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p’ra fora, já, já, essa mulher!”

Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.

– “Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...”

Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.

E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma ; por que, nem sabia. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono para a morte; e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.

Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.

E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela – exclamava – tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que, nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bemestar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.”

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

E Riobaldo se irrita com as incertezas da vida


(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 20)

Riobaldo, ainda inquieto e sem conseguir dormir, continua sua conversa com Jõe. Os dois, depois da batalha, tinham essa dificuldade.

E Riobaldo questiona se jagunço, que vive em meio a “Pecados, vagância de pecados”, que “jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando”, será se podia esperar de Deus perdão e proteção?

E se acha tolo por esperar boa resposta de Joe, “broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha?”  Riobaldo fica irritado com a primeira resposta do amigo, “– Uai?! Nós vive...” e o questiona de maneira tão veemente que um outro colega, que até então dormia, acorda e pede silêncio.

E Riobaldo explica o motivo de tanta irritação:

“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...”

Ele acabara de combater e, na luta, matara pessoas do grupo do Zé Bebelo e que tinham sido, antes, seus companheiros de bando. Agora lutava contra eles. Carecia mesmo de um motivo claro, de uma definição precisa, do certo ou do errado, do bom ou do mal...

Riobaldo, o homem sem certezas, anseia por respostas que não deixem dúvidas, anseia por perder justamente o que de melhor tem, ou seja, o seu inacabamento, o seu estar em aberto.

Diadorim não tinha dúvidas, não tinha medo, desconhecia até esse sentimento. Talvez por isso mesmo fascinou tanto a Riobaldo, desde o início. Quando se conheceram ele se espantou ao descobrir que aquele menino nem sabia o que era esse sentimento.

E passará grande parte do livro tentando se livrar do seu medo, de suas incertezas e inseguranças. E terá em Diadorim seu maior modelo, pois julga que ele é absolutamente corajoso. Mas Riobaldo se engana, Diadorim não é corajoso, ele é valente. Ao lhe faltar o medo fica desprovido também da prudência. Diadorim pagará com a morte seu desejo cego, inequívoco e absoluto de vingança. Riobaldo ao tentar ser como Diadorim, ao tentar não sentir medo, não só não alcançará a coragem pretendida com perderá o amor, ao perder Diadorim.

E Jõe Bexiguento, justo ele que causou tanta irritação em Riobaldo, resolve contar a estória de Maria Mutema. E assim, tal qual uma parábola, dá a Riobaldo a chave da compreensão de seus problemas mais profundos. Essa estória é nuclear no livro, o único conto completo dentro do livro, e trás em si o núcleo da temática do romance. Começaremos a falar de Maria Mutema na nossa próxima postagem.


Emily Dickson

Para a hora da esperança:

Sem saber como virá o amanhecer
Eu abro todas as portas.
Terá asas como um pássaro, 
Ondulará como as encostas?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Alain de Botton - Religião para ateus

"Sentar-se à mesa com um grupo de estranhos tem o incomparável e insólito benefício de tornar um pouco mais difícil odiá-los impunemente. Preconceito e conflito étnico se alimentam da abstração. Contudo, a proximidade exigida por uma refeição - algo que tem a ver com passar as travessas para os outros, abrir guardanapos ao mesmo tempo e até mesmo pedir um saleiro a um desconhecido - perturba nossa capacidade de nos agarrar à crença de que estranhos que vestem roupas incomuns e falam com sotaques distintos merecem ser atacados ou mandados para casa. De todas as soluções políticas de grande escala que foram propostas para resolver conflitos étnicos  existem poucas maneiras mais eficazes para promover a tolerancia entre vizinhos desconfiados do que forçá-los a cear juntos."

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Flávia Moura Rangel Henriques



“Veio do mais sofrido dos meus pacientes, sete anos
E a vida?
Olhou para a janela
Olhou de novo e respondeu
Ensolarada!”

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cora Coralina


Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo que for desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas. Daqui para frente apenas o que couber no bolso e no coração.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DA AÇÃO AO RISO




O Mestre estava de bom humor; por isso os discípulos procuraram ouvir dele as etapas pelas quais passara em busca das coisas divinas . 
— Primeiro Deus me conduziu pela mão — disse ele — para a Terra da Ação e lá morei por vários anos. Aí Ele voltou e me conduziu à Terra das Tristezas; lá vivi até que meu coração foi purificado de todo afeto desordenado. Foi aí que me encontrei na Terra do Amor cujas chamas flamejantes consumiram tudo o que me restava de individualidade em mim. Isso me levou à Terra do Silêncio, onde os mistérios da vida e da morte foram revelados diante de meus olhos. 
—Foi essa a última etapa de sua busca? — perguntam eles. 
—Não!—respondeu o Mestre.— Um dia, disse Deus:
‘Hoje eu te levarei ao mais recôndito santuário do Templo, ao coração do próprio Deus’. E fui conduzido à Terra do Riso.

(‘O ENÍGMA DO ILUMINADO’, DE ANTHONY DE MELLO, EDITORA LOYOLA)

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Humor


“É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado acerca de si." 

André Comte-Sponville


“Se minha relação com Chloe nunca alcançou os níveis do terror, foi talvez porque fomos capazes de temperar a escolha entre amor e liberalismo com um ingrediente que muito poucas relações jamais possuíram, um ingrediente que poderia simplesmente (se houvesse o suficiente dele por aí) salvar casais da intolerância, isto é, um senso de humor”.
(...)
“E com a incapacidade de rir vem uma incapacidade de reconhecer a relatividade das coisas humanas, a multiplicidade e o choque de desejos... Se Chloe e eu éramos capazes de transcender algumas de nossas diferenças, era porque tínhamos a vontade de fazer piadas dos impasses que encontrávamos nos personagens um do outro...é um sinal de que duas pessoas tenham parado de amar uma a outra quando não são mais capazes de transformar diferenças em piadas. O humor enfeitava as divisórias da irritação entre nossos ideais e a realidade”.

ENSAIOS DE AMOR, Alain de Botton

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

E Riobaldo fala de quando nos sentimos maiores



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 18)


E Hermógenes, aquele que ainda iria matar a traição o grande líder Joca Ramiro, mas que agora é quem lidera essa parte do bando, convoca Riobaldo para uma missão importante e perigosa, na qual provavelmente haverá combate com os inimigos. E Riobaldo, surpreendido pelo convite, se vê repentinamente engrandecido, sente-se maior, cheio de – justo ele – seguranças e certezas. A fortuna lhe sorriu, e isso não é fácil para ninguém. É difícil manter a sanidade nesses momentos.

“Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, Rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!” Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.”

Fechado na ideia, fechado no couro. Riobaldo, sempre hesitante, temeroso, angustiado, agora mudou. Está determinado, assustadoramente determinado. Sente-se maior e prestigiado. Esse é o momento perigoso, é o momento que nos perdemos. Como bem disse Paulo Mendes Campos.

“Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.”

Perdemos o humor, esse tão importante mediador de sabedoria em nossas vidas, quando perdemos nossa própria medida, nos sentindo umas drogas ou muito bacanas.

Riobaldo, ao se sentir muito bacana perde até a sua percepção pessoal. Ele não gostava do Hermorgenes, nunca gostou. Diadorim, que depois, ao saber que justamente Hermorgenes matara seu pai, seria possuído por imenso ódio e desejo de vingança, discordava então de Riobaldo, achando que o dito era corajoso, bom líder e fiel a Joca Ramiro. Mas Riobaldo nunca se deixou enganar. Até esse dia, quando foi o primeiro convocado para a perigosa batalha, perdendo então sua humana humildade.

E como já dissemos, em postagem anterior:

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. E por ser assim incompleto o ser humano encontra o seu próprio mistério, que é ser um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Ou, nas palavras de São João da Cruz

“Nesta desnudez acha o espírito o seu descanso,
porque não cobiçando nada,
 nada o fatiga para cima
e nada o oprime para baixo,
porque está no centro de sua humildade.”

Não me lembro mais quem, mas alguém já disse:
“Por mais que eu tenha tentado, a vida inteira, ser maior ou menor do que eu sou, nunca consegui ser senão eu mesmo, nunca consegui passar senão na porta que tinha exatamente o meu tamanho.”

Foi Plutarco, em seu livro “Como distinguir o amigo do bajulador”, que afirmou que a hora que realmente precisamos de um amigo é a hora na qual a fortuna nos sorri, e tudo parece dar certo. O verdadeiro  amigo nos atenta para que não nos deixemos engrandecer demasiadamente. Já o bajulador procuraria inflar ainda mais o balão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

E Riobaldo fala de quando optamos pela tristeza e morte




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 17)



“Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.”


Riobaldo diz aqui de como optamos, às vezes, pela tristeza e morte. E nestes momentos não conseguimos ver o que é bonito e bom. Optar pela morte é uma definição perfeita de necrofilia. Esse conceito, e o conceito irmão de biofilia, foram muito bem elaborados por Erich Fromm, nos extratos selecionados abaixo.



(...)
Dom Miguel de Unamuno, grande filósofo e humanista, em 1936, no início da guerra civil espanhola, responde aos gritos de “viva la muerte!” pronunciados pelos partidários do General Millán Astray, defensor junto com o Generalíssimo Franco da guerra civil, que acabara de discursar na universidade de Salamanca.
“...Acabo de ouvir um grito necrófilo e insensato. E eu, que passei a vida formando paradoxos que despertaram a ira da incompreensão alheia, devo dizer-lhes, como autoridade especializada, que este paradoxo bizarro me é repelente. O general Millán Astray é um aleijado. Digamos isso sem qualquer disfarce. Ele é um inválido da guerra. Assim foi também Cervantes. Infelizmente há demasiados aleijados na Espanha agora. E cedo haverá ainda mais se Deus não vier em nosso auxílio. Dói-me pensar que o General deva ditar o modelo da psicologia da massa. Um aleijado desprovido da grandeza espiritual de um Cervantes está habituado a procurar sinistro alívio provocando mutilação em torno de si”.
Diante destas palavras Millán Astray não pode mais controlar-se, gritando “Abaixo a inteligência! Viva a morte!” E é aplaudido pelos companheiros falangistas. Mas Unamuno não se abateu e continuou:
”Este é o templo do intelecto. E eu sou seu sumo sacerdote. É você que profana seu sagrado recinto. Você ganhará porque dispõe de mais do que suficiente força bruta. Mas você não convencerá. Para convencer é mister persuadir. E a fim de persuadir você precisa do que lhe falta: Razão e direito na luta. Considero fútil exortá-lo a pensar na Espanha. Eu pensei”.
Unamuno ficou preso em casa até a sua morte poucos meses depois.
Necrofilia significa amor aos mortos, literalmente. Em seu grau máximo é uma perversão sexual.
A pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é vivo, tudo que está morto: cadáveres, decomposição, fezes, sujeira. Gostam de falar de enterros, doenças e morte. Enchem-se de vida justamente quando podem falar de morte.
Os necrófilos moram no passado, nunca no futuro. Seus sentimentos são essencialmente sentimentais, isto é, alimentam a memória dos sentimentos que foram sentidos ontem. São frios, distantes, devotos da lei e da ordem.
Amam a força, entendida como força para matar. Para eles só há dois sexos: os fortes e os fracos, os poderosos e os impotentes, os matadores e os mortos. Enquanto a vida se caracteriza pelo crescimento, a pessoa necrófila ama tudo que não cresce, tudo que é mecânico. É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos vivos são transformados em coisas. Memória em vez de experiência, ter em vez de ser, é o que interessa. O necrófilo pode relacionar-se com um objeto - uma flor ou uma pessoa - somente se possuir esta; por isso uma ameaça às suas posses é uma ameaça a ele mesmo; se perder a posse perderá o contato com o mundo. Ele gosta do controle e, no ato de controlar, ele mata a vida. Teme profundamente a vida por ser esta pela própria natureza desordenada e incontrolável. Para o necrófilo, justiça significa divisão correta, e dispõe-se a matar ou morrer pelo bem daquilo que denomina justiça. “Lei e ordem” para ele são ídolos - tudo que ataca a lei e a ordem é sentido como um ataque satânico contra seus valores supremos.
A pessoa necrófila é atraída pela escuridão e pela noite. Ele quer voltar às trevas do útero e ao passado da existência inorgânica ou animal. É intrinsecamente orientado para o passado, não para o futuro que odeia e teme. Relacionado com isso há seu anelo de certeza. Mas a vida nunca é certa, nunca é previsível, nunca é controlável; a fim de tornar a vida controlável ela tem que ser convertida em morte; a morte é, de falto, a única certeza na vida.
A pessoa necrófila é ordeira, obsessiva e pedante.
A pessoa biófila: sua essência é o amor à vida. É qualidade inerente à toda substancia viva viver e preservar sua existência. “Tudo na medida em que é ele mesmo, esforça-se por persistir em seu próprio ser”. Espinosa, Ética, III, prop. VI.
O pleno desabrochar da biofilia é encontrado na orientação produtiva. A pessoa que ama a vida completamente é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas. Prefere construir a conservar. É capaz de maravilhar-se, e prefere ver algo novo à segurança de encontrar a confirmação do velho.
A consciência da pessoa biófila não é a de se obrigar a abster-se do mal e fazer o bem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo. Por essa razão o biófilo não fica com remorso e sentimento de culpa que, afinal de contas, são somente aspectos de autodesprezo e tristeza. Ele se volta rapidamente para a vida e tenta fazer o bem.
As formas puras das orientações necrófilas e biófilas são raras. O que importa é qual das duas tendências é dominante.
A condição mais importante para o desenvolvimento do amor à vida na criança é ela estar com pessoas que amam a vida.
Walt Whitman: “Passar (oh, sempre vivendo) e deixar os cadáveres para trás”.
(...)




Optar pela vida encontra bela expressão no trecho bíblico abaixo, paradoxalmente localizado em “lamentações 3;21”.

“Quero trazer à memória aquilo que me traz esperança.”

E seguimos escolhendo entre o que nos vitaliza ou o que nos esmorece.