quinta-feira, 27 de setembro de 2012

João Guimarães Rosa


“Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabe por que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.”

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Orides Fontela


Bendita a sede
por arrancar nossos olhos
da pedra.

Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
da água.

Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte.

E Riobaldo fala do amor



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 9)

“Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se não, minha confusão aumenta.”

Falar do amor tende a dar em confusão. E Riobaldo pede para que não se entre nesse assunto para que sua confusão não aumente. Mas ele próprio já falou sobre o amor e voltará a falar, inúmeras vezes.

Neste trecho Riobaldo fala do amor que vai sendo construído, com a gente querendo e ajudando, e fala do amor inteiriço fatal, cheio de surpresas.

De certa forma ele está dizendo do amor e da paixão. E é importante completar a conversa falando ainda da obsessão.

O amor é a amizade do querer.
A paixão é a ambição do querer.
A obsessão é a cobiça do querer.

A amor é sinônimo quase perfeito de amizade. Se o amor fosse uma mão, a palma desta mão – a base, o fundamento - seria a amizade. Os dedos dessa mão seriam o cuidado, o respeito, a admiração, o carinho e o desejo. O amor tem duas características interligadas. Ele é reversível e exige reciprocidade. Se eu penso amar alguém, vou na direção desse meu afeto e esta pessoa mostra não sentir amor por mim, meu amor – se é realmente amor - se retraí. Sem a reciprocidade do amor do outro o amor se reverte e deixa de ser amor.
O amor sempre é bom.

A paixão é a ambição do querer, é o querer com entusiamo. A paixão é a graxa que vem recuperar a flexibilidade das molas do amor. Ela nada tem de ruim. Ruim é fazer o que fazemos quase sempre: confundi-la com o amor. Pois como a paixão trás em sua natureza a inconstância – ela vai e volta, ela aumenta e diminui, ela aparece e some – sempre que ela arrefece achamos que não amamos mais. Mas se tivéssemos um pouco de paciência veríamos que ela retornaria. E que, mesmo com ela ausente, ainda assim o amor estaria presente. Um amor mais calmo, mais sereno, mas que se esperar um pouco, verá, mais cedo ou mais tarde, o retorno da paixão e do entusiasmo.
Assim a paixão pode ser boa ou ruim, dependendo de se a confundimos ou não com o amor.

A obsessão é a cobiça do querer. É um querer que não aceita que o outro não queira e que está disposto a quaisquer condições para permanecer com o outro. Nesse sentido a obsessão é o contrario do amor: ela é não reversível e não exige a reciprocidade. Contando que você fique comigo, pouco importa que seja por amor, se for por qualquer outro motivo – por culpa, dó, falta de opção melhor, medo de ficar só, constrangimento ou qualquer outro motivo – ainda assim, se prisioneiro da minha obsessão, eu aceitaria.
Se o amor é sempre bom e a paixão pode ser boa ou não, a obsessão nunca é boa. Ela é a própria negação do amor e a ausência da soberania. Já não escolho tampouco sou livre: sou é prisioneiro do meu querer e de minhas vontades.

Quanto sofrimento seria evitado se tivéssemos essa diferenciação bem clara em nossas cabeças?

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Drummond


"... e eu vou cronicando seu viver com a simpatia cúmplice que me inspiram o ser comum e sua pinta de loucura mansa, pois na terra alucinada que nos tocou, ainda é virtude (até quando?) cumprir sem violência o mandamento de existir."

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Adélia Prado

Sob pó e fuligem 
os velhos troncos sucumbem 
aos pequeninos botões.
A prima vida volta e é vera.

Sêneca:


“Problemas há, liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até o fim ou simplesmente limitar-se a uma encenação para ilustrar o rol dos divertimentos”.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Katsuhika Hokisai, sécs. 18-19



“Desde a idade de seis anos eu tinha mania de desenhar a forma dos objetos. Por volta dos cinquenta havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo que produzi antes dos sessenta não deve ser levado em conta. Aos setenta e três compreendi mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os pássaros, os peixes e os insetos. Em consequencia, aos oitenta terei feito ainda mais progresso. Aos noventa penetrarei no mistério das coisas; aos cem, terei decididamente chegado a um grau de maravilhamento - e quando eu tiver cento e dez anos, para mim, seja um ponto ou uma linha, será vivo.”

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Bernard Shaw: O teatro das ideias




Este é um trecho da resposta de Shaw a uma carta de um jovem crítico de teatro que recorria a ele buscando dicas sobre o que escrevia.

“Você não levou nem um pouco em conta minha recomendação de que deveria escrever um livro. Diz que ainda tem pouca competência pra tanto. É exatamente por isso que recomendei que você aprenda. Se lhe mandasse aprender a patinar você não me responderia dizendo que ainda não tem suficiente equilíbrio. Uma pessoa aprende a patinar levando trambolhões e fazendo papel de bobo. Na verdade, progride-se em todas as coisas fazendo-se resolutamente o papel de bobo. Você nunca escreverá um bom livro sem antes ter escrito alguns ruins. Se lhe enviassem meu artigo escocês você veria que comecei escrevendo críticas abominavelmente ruins (...)Você tem  que passar por isso também; e nunca é cedo demais para começar. Escreva mil palavras por dia pelos próximos cinco anos pelo menos nove meses por ano.

E este é um trecho da resposta de Shaw a uma carta de amor que ele recebeu.

“Não:  você não me ama nem um pouquinho. Tudo isso é natureza, instinto, sexo: não prova nada mais que isso. Não se apaixone: seja você, própria, nem de mim nem de ninguém. A partir do momento em que não puder ficar sem mim você estará perdida, como Bertha. Nunca tema: se nos queremos de verdade, acabaremos descobrindo. Só sei que você tornou o outono muito feliz e que sempre vou gostar de você por isso. Com o futuro não me preocupo: façamos o que está em nossas mãos & aguardemos os acontecimentos”.

Alguns poderiam supor que ele estava enrolando a remetente. Fato é que ele se casou com esta pessoa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Violência: As relações entre o sacrifício e a violência - Os bodes expiatórios



"A violência não precisa de razões, sabe encontrá-las excelentes quando quer se desencadear. Entretanto essas razões, por boas que sejam, não merecem jamais serem levadas a sério. A violência busca, e sempre acaba por encontrar, uma vítima, e a trocará por outra sem qualquer razão, exceto ser vulnerável e estar ao alcance da mão.

A escolha da vítima não deve ser definida em termos de culpa ou inocência. Não há o que expiar. A sociedade desvia para uma vítima relativamente indiferente, desde sacrificável, uma violência que ameaça ferir seus membros e que ela pretende proteger a qualquer preço.

A vítima não substitui apenas um indivíduo especialmente ameaçado, e não é oferecida a tal ou qual indivíduo, especialmente sanguinário, substitui e se oferece ao mesmo tempo a todos os membros da sociedade por todos os membros da sociedade. É à comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria violência e hostilidade desviando-a para vítimas que lhe são “exteriores”.

Há um denominador comum a toda situação de substituição sacrificial - a violência e hostilidade intestinas. São as dissensões (divergência, desavença e oposição), as rivalidades, o ciúme, a inveja, as disputas que o sacrifício pretende antes de tudo eliminar restaurando a harmonia da comunidade e reforçando a unidade social e conservando a prosperidade material.

O sacrifício tem a função de apaziguar as violências intestinas e impedir que estalem os conflitos.

A lista das vítimas é bastante heterogênea. Tal diversidade apresenta, entretanto um critério comum, em primeiro lugar são seres que não pertencem, ou pertencem muito pouco à sociedade. São pessoas exteriores ou marginais, às vezes por sua qualidade de estrangeiro, de inimigo ou de recém-chegado, pela idade ou pela condição servil.

Outro determinante na escolha das vítimas é a necessidade de evitar a vingança. O desejo de violência se dirige aos próximos, porém não pode satisfazer-se sobre eles sem provocar todo tipo de conflito; convém, pois desviá-lo para uma vítima sacrificial que se possa ferir sem perigo, pois não haverá ninguém para defender a sua causa."

fonte:
La violência e lo sagrado 
René Girard – Seleção e tradução minhas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Para Maria da Graça:



Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no país das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice  faz à gatinha: “Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?”.
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo?”
Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!”. O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato à Alice: “Gostarias de gatos se fosses eu?”.
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!” Ouvirá isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois romance é só um jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A Alma da gente é uma máquina complicada que produz uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou nos nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso, Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Paulo Mendes Campos

OSLER, WILLIAM (1849 - 1919):


Nasceu no Canadá. Aos 25 anos era professor de medicina. Tornou-se um dos celebres quatro doutores que revolucionaram a educação médica nos Estados Unidos da América.
Era o médico, o professor, o humanista, o escritor, o historiador, o filantropo, o amigo e companheiro de jovens e de velhos. O médico de quem todos queriam se aproximar e cuja simpatia pessoal e riqueza de conhecimentos clássicos e científicos resumiu para o Século XX tudo o que havia de mais nobre da larga tradição histórica da medicina.
Provavelmente não houve medico algum que fosse tão citado quanto ele. Era o médico mais eminente e de maior influencia de seu tempo e se fazia ser querido de tanta gente por suas qualidades pessoais. Entrava no quarto do enfermo com uma canção e um sorriso nos lábios, com um aspecto de alegria, com um nao-se-sabe-o-que de radioso, que já aliviava o paciente. Era aquele que amava seus semelhantes e por todos era querido.
“O que nos causa dano é o sentimento absurdo de falta de tempo, essa tensão que não nos deixa respirar, essa ansiedade de resultados, e essa ausência de harmonia e soltura interior.
A vida é feita de uma coisa atrás da outra: a vida é um hábito [ou um continuado].
A vida aparece em compartimentos do tamanho de um dia.
O que importa sobretudo não é deparar com o que vislumbra os olhos mas senão o que temos à mão. Olhe ao redor, nunca para o horizonte distante porque aí está o perigo. Não está aí a verdade senão as falsidades, as fraudes, as charlatanices, os fogos fátuos que tem enganado todas as gerações. Todos eles fazem sinais desde o horizonte e enganam os homens que não se contentam com mirar a felicidade e a verdade que vem a cair sob seus pés.
A concentração é uma arte que se vai adquirindo lentamente. Pouco a pouco se vai acostumando a mente aos hábitos de ingerir espaçadamente e digerir com cuidado, único meio para se livrar da dispepsia mental.
Estende-se a nossa volta um mundo promissor, que nos está endereçado e que nos convida a gozá-lo.
Supõe-se que um homem que tenha ocupado cargos de importância em quatro universidades, que tenha escrito um livro coroado de êxito, entre outras atividades, possua um cérebro de qualidade especial. Somente os amigos mais íntimos conhecem a verdade a respeito de mim, como a conheço eu! Meu cérebro, o digo de boa fé, é o mais mediano que existe. Mas então o que dizer das cadeiras universitárias e tudo o mais? Nada mais que hábito, caminho trilhado, resultado de uma vida quotidiana.”

domingo, 9 de setembro de 2012

A mão suja - Carlos Drummond de Andrade



Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.

E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo da casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
mão limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

Eu era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
- o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!
Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura - transparente -
colar-se a meu braço.

João Cabral de Melo Neto



“Pois que inaugurando esta criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e novo caderno começam,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vamos poder explodir nossas sementes,

que desta vez não perca esse caderno
sua sedução direta para o dente,
que o entusiasmo conserve vivas suas molas
e que possa enfim o ferro
comer a ferrugem, o sim comer o não.”

sábado, 8 de setembro de 2012

E Riobaldo conhece Diadorim e admira sua coragem:


(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 8).

Neste ponto do livro, por volta da pg. 102, voltamos no tempo e o menino Riobaldo conhece o menino Diadorim.


“Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade.”

A afinidade é imediata e eles conversam sem cansaço.

“Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido.”

E Diadorim convida Riobaldo para passear de canoa. Ao entrarem no Rio São Francisco Riobaldo fica com muito medo. E Diadorim fala:

 “Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O menino sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio. Via os olhos dele, produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem medo?” – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo não...” – e, passado o tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem mais valente deste mundo.”
(...) medo do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.

Relembrando texto anterior sobre a coragem:

Aqui é possível fazer uma primeira distinção entre coragem, valentia e covardia.

Coragem é conseguir ultrapassar os receios quando se é fundamental tentar. O medo está presente na coragem e vem temperá-la, para que ela possa se equilibrar com a prudência. Coragem é seguir o ditado: “É hora de se usar a tática da gelatina: vai tremendo, mas vai”. A coragem remete, em sua etimologia, à palavra cordos, coração. E parece sugerir, desta forma, que inclui em si os sentimentos e emoções, e que está perturbado por estas não indica falta de coragem.

Coragem não é não sentir medo. Que mérito haveria em fazer algo sem nenhum resquício de medo? Em que precisei me superar, me alterar, para conseguir realizar, se não senti nenhum receio? O mérito está em sentir medo, mas sabendo ser importante, conseguir ultrapassá-lo e não paralisar.

Quando o medo toma a pessoa por inteiro, chegando a paralisá-la, estamos falando então da covardia. Está é quando a pessoa, diante da necessidade fundamental de tentar, se deixa imobilizar pelo medo.

No polo oposto encontra-se a valentia, que é o agir intempestivo, sem nenhuma prudência. Essa valentia assustadora, aparentemente uma ação sem nenhum tipo de receio, na maior parte das vezes é justamente o contrario disto: é uma ação possuída pelo medo, agora já transformado muitas vezes em pânico.

Diadorim diz nunca ter sentido medo. Ele está muito mais próximo da valentia do que da coragem. E Riobaldo, que sente tanto medo, vislumbra em Diadorim a ausência desse sentimento que tanto lhe atormenta, e fica impressionado.

Riobaldo é uma pessoa em busca, que caminha por um tipo de iniciação. Terá duas grandes questões a enfrentar em seu processo de transformação.

A primeira questão será a busca por adquirir coragem e superar o medo paralisante. Mas seu parceiro neste processo iniciático, ou seu modelo, desconhece o medo. Diadorim não é corajoso, é valente. E Riobaldo sofrerá por tentar chegar à coragem via ausência de medo. Pois o caminho de Diadorim o conduzirá a dor, como seu próprio nome parece indicar: dia-dor-zim. Ou, nas palavras do próprio romance: “(Diadorim) que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...”

A segunda questão que terá que enfrentar é o aprendizado do amor e seu mestre nesse aprendizado será Otacília. É por esse motivo que já perto do fim do livro, logo após a morte de Diadorim, Riobaldo afirma por três vezes que a estória se acabou e, apesar disto, continua a contá-la. Acabou a primeira fase, a fase do aprendizado da coragem. Inicia-se a segunda fase, a fase do aprendizado do amor.

Talvez pudéssemos dizer que a única coragem realmente digna desse nome é a coragem de amar. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

E Riobaldo fala de como não sabemos, às vezes, que o bom tá ao alcance de nossas mãos:



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 7).

Riobaldo diz agora de uma carta que levou oito anos para chegar. E ainda assim chegou a ele. Logo adiante vai narrar seu primeiro encontro com Diadorim, por acaso, os dois ainda crianças. E vai perguntar porque encontrou ele naquele dia.

"Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá, filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro, nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz. E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal, no São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo do Morro dos Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória, mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!"

Ou, nas palavras de William Osler, O que importa sobretudo não é deparar com o que vislumbra os olhos mas senão o que temos à mão. Olhe ao redor, nunca para o horizonte distante porque aí está o perigo. Não está aí a verdade senão as falsidades, as fraudes, as charlatanices, os fogos fátuos que tem enganado todas as gerações. Todos eles fazem sinais desde o horizonte e enganam os homens que não se contentam com mirar a felicidade e a verdade que vem a cair sob seus pés.

Ou, na simplicidade de Mário Quintana:


FELICIDADE

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,

Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

terça-feira, 4 de setembro de 2012

DA FELICIDADE - Mario Quintana




Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

E Riobaldo fala das grandes travessias e do desespero




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 6)

E, logo depois que o romance começa a falar da saudade, os personagens tentam a travessia do Liso do Suçuarão pela primeira vez. O Liso era um deserto terrível. Queriam atravessar por ele para tentar pegar de surpresa os inimigos, aqueles que mataram por traição o pai de Diadorim. Mas cometem o erro de tentar atravessar o deserto carregados demais de mantimentos. Tudo preveniram e estocaram para a viajem. Mas, mesmo por isso, não conseguem realizar a travessia. E são obrigados a voltar, com muitas perdas.

A saudade é um tipo de excesso de bagagem que dificulta que atravessemos os vazios. Ficamos agarrados no para trás e não conseguimos seguir caminhando.

E então, por volta da página 49, Riobaldo fala sobre pactuar com o diabo. O autor parece querer mostrar que é diante de nossas grandes travessias que sofremos a tentação de pactuar, de tentar controlar as incertezas e angústias e dessa forma acabamos por perder o rumo.

Voltando da tentativa fracassada de atravessar o Liso, sem provisões nem água, acabam por matar o que julgam ser um macaco e se alimentam dele. Pouco depois descobrem que se tratava de um homem, perdido e nu, alienado de si.

É um momento de desespero. 

E Riobaldo fala da possibilidade da existência ou não de Deus. Estamos na página 60:

“(...) Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo (...)
(...) Deus existe mesmo quando não há.”

Ver ou não ver sentido na vida; ver ou não ver sentido no mundo. 

Aqui cabe uma diferenciação entre a desilusão e a decepção.

Desiludir é diferente de decepcionar. Desiludir é perder as ilusões. Esse processo é comumente acompanhado de tristezas mas pode também ser acompanhado de alegrias, uma vez que ao perder a ilusões nos aproximamos da realidade, e aproximar-se da realidade, vê-la com mais clareza, saber melhor sobre ela, pode ser motivo de satisfação, descoberta e serenidade.

Decepcionar é mais profundo. Na decepção não somente posso perder as ilusões que tinha como acabo por questionar meus valores mais caros, minhas motivações mais profundas. Decepcionado posso questionar os fundamentos que orientam minha vida. Se na desilusão posso ter a alegria de aproximar-me da realidade, na decepção perco o sentido primordial do meu viver.

Ou, nas palavras de Riobaldo...

"Estou contando ao senhor, que carece de um explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar."

Drauzio Varella - A obsessão de seu Elias




(Um dos melhores textos que conheço sobre o ciúme.)

Quando dona Esmeralda contava que tinha setenta anos na presença do Fernando, meu irmão, ele a repreendia: “Não seja boba, diga sessenta!” Se dissesse, de fato não faria má figura: tinha o rosto quase sem rugas.
Seu Isidoro, o marido, jamais deixou de acompanhá-la às consultas e a quantos lugares foram necessários por causa da doença, comportamento inusitado entre os homens.
Quando foi hospitalizada, ele chegava às seis da manhã e só arredava pé às onze da noite, enxotado por ela, preocupada com as noites maldormidas do esposo hipertenso.
Dificil ver um casal que se entendesse e se respeitasse como aquele, apesar dos temperamentos opostos: dona Esmeralda era extrovertida, contadora de casos, gostava de sair com as amigas, usar roupas coloridas; seu Isidoro, caseiro, metódico, discreto no vestuário, media as palavras antes de pronunciá-las. Por isso, ela comparava a harmonia em que viviam ao prosaico arroz e feijão:
- Separados são diferentes; misturados, combinam tanto que a gente não enjoa.
Formavam uma parceria engraçada, porque ela falava pelos dois e não perdia oportunidade de provocá-lo com alguma referência a sua personalidade taciturna. Ele sorria ou balançava a cabeça, complacente, mas, de quando em quando, emitia uma interjeição ou fazia um pequeno comentário de acurado senso de humor. Nessas ocasiões, ria ela e quem estivesse por perto. Uma vez, depois de descrever com detalhes a casa em que moravam, dona Esmeralda perguntou-lhe por que não acrescentava nada à sua descrição:
- Estava esperando você parar para respirar - respondeu ele, sério.
Outra vez, tendo contado uma aventura que seu Isidoro vivera antes de conhecê-la, a qual, entre outros detalhes relatados, incluía uma batalha de flechas entre índios rivais entrincheirados nas margens opostas de um rio na Amazônia, onde ele fazia um estudo de prospecção geológica, ela reclamou:
- Tudo se passou com ele, mas eu é que preciso contar, porque há quarenta anos vivo com um túmulo dentro de casa.
- Não perco a esperança de contar essa história, se um dia você deixar.
Dona Esmeralda foi internada quando  a doença chegou ao estágio final. Enfraquecida, menos falante, ainda fazia planos e mantinha em relação ao futuro um otimismo descabido, difícil  de entender numa pessoa esclarecida como ela. Atribuímos sua atitude ao processo de negação, tão freqüente na fase terminal, e procuramos poupá-la de explicações que lhe dessem noção exata da evolução desfavorável.
Nessa fase, apareceu no consultório um senhor árabe de bengala e cabelos brancos. Sentou-se na minha frente, pouco à vontade:
- Em que posso ajudá-lo? - perguntei.
Ajeitou-se na cadeira, apertou minha mão timidamente, disse que se chamava Elias e continuou, em tom pausado:
- Não estou doente, marquei consulta para lhe fazer um pedido: convencer sua paciente Esmeralda a receber minha visita. Se ela morrer sem que eu a veja, não vou me perdoar.
- Por que o senhor não fala diretamente com ela?
- Ela não atenderia ao telefone. Fomos casados durante cinco anos e nos separamos por incompatibilidade de gênios. Nunca mais consegui tirá-la da cabeça, penso nela todo santo dia.
- Os senhores tiveram algum contato? Como soube que ela está doente?
- Não a vejo há quarenta e três anos. Foi melhor para nós! No fim de semana, a mulher de um amigo me pôs a par dos problemas dela e me deu o seu nome, doutor. Desde então, não penso noutra coisa senão em vê-la pela última vez.
- Posso falar, mas a decisão é dela, como o senhor sabe.
- Preciso de sua ajuda; serei eternamente grato. Explique que não pretendo falar do passado, nem dizer o quanto sofri quando ela me abandonou, só quero olhar para ela. Nada mais!
Fiquei tocado pela amargura em sua expressão. Estranho imaginar que dona Esmeralda um dia tivesse casado com outro homem.
Na manhã seguinte, fui para o hospital decidido a fazer o que o senhor árabe havia solicitado. Estavam ela e  o marido no quarto. Com a máxima delicadeza, perguntei a ele se podia nos deixar a sós durante quinze minutos.
- Até por mais tempo - respondeu seu Isidoro, que ainda não tinha tomado o café-da-manhã.
- Dona Esmeralda, ontem fui procurado por um senhor que disse ter sido seu primeiro marido.
Ela arregalou os olhos:
- Ele está vivo?
- Parecia bem de saúde, e me encarregou de lhe fazer um pedido. Não tenho como deixar de atendê-lo, a menos que a senhora nem queira ouvir.
- O que ele deseja?
- Ver a senhora. Diz que não falará sobre o passado.
Ela ficou calada, olhos perdidos no  teto, enigmáticos. Depois me pediu que levantasse a cabeceira da cama.
- Se o senhor tem mesmo os quinze minutos, sente. Vou lhe contar uma história:

Elias foi meu segundo namorado. Tinha trinta anos quando o conheci, dez mais do que eu. Fazia questão de repetir todos os dias, em particular ou na frente dos outros, que nunca vira mulher tão encantadora. Na terceira vez em que saímos, ganhei um anel de ouro; para comemorar trinta dias de namoro, um colar de pérolas verdadeiras; passados três meses, estava na sala de casa me pedindo em noivado para meus pais. Nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher com tanta consideração.
Coitado, havia chegado ao Brasil aos dezoito anos, sozinho, depois de perder a mãe viúva na Síria. Dizia que  eu devia ser um anjo enviado por ela para iluminar o caminho do filho. Fiquei apaixonada, era uma princesa ao lado daquele homem amoroso, incapaz de um gesto rude. Casamos em seis meses.
Quando voltamos da lua-de-mel, fomos ao aniversário da esposa de um patrício dele, rapaz simpático, com sotaque forte, que contava casos muito engraçados. Eu, brincalhona desde criança, ri muito naquela noite; mas não fui a única, todo mundo se divertiu. Menos o Elias, que passou a festa emburrado e fez questão de irmos embora cedo, contra minha vontade.
No caminho perguntei a razão do mau humor. Foi o começo do inferno! Ele ficou transtornado, aos berros disse que eu não sabia me comportar, que jogava a cabeça para trás quando ria só para provocar os homens, que meu vestido era curto, mais de cotado do que devia, e por aí afora. Fiquei chocada, porque até aquela noite ele tinha sido um cavalheiro impecável.
Acordei de manhã com os olhos inchados de chorar. Quando me viu, ele ajoelhou a meus pés, jurou ter armado aquela cena porque estava enlouquecido de paixão por mim, porque eu era maravilhosa e encantava os homens a minha volta; não que fosse culpada, admitia, mas por ser ingênua: não tinha noção da sensualidade que emanava de meu corpo. No fim, pediu apenas que eu prestasse atenção, fosse mais reservada na frente dos homens, para que não levassem a mal minha espontaneidade. A noite, chegou com dois pingentes de ouro, lindos.
Naquele tempo éramos educadas para ser discretas e acomodadas. Na minha inexperiência, achei que ele talvez tivesse razão: se algo em mim despertava cobiça nos homens, precisava mesmo tomar cuidado. Não tinha a menor intenção de magoar meu marido, estava apaixonada; solicitei até que ele me alertar se ao notar algum comportamento desavisado de minha parte.
Elias tomou o pedido ao pé da letra, e lentamente aumentou a pressão para mudar minha personalidade. No início, implicava com o decote de um vestido, com a espontaneidade de uma reação  em  público,  com  o  fato  de  eu falar com o garçom. Com o tempo, eu trocava de roupa três ou quatro vezes antes de sair, até encontrar uma do gosto dele; nos restaurantes, quando não havia mesa disponível num local que me deixasse de frente para a parede, nem entrávamos; ir à padaria ou à quítanda ficou por conta da empregada, a menos que eu estivesse disposta a enfrentar duas horas de discussão.
Contando assim, o senhor vai achar que eu era submissa demais. Talvez fosse, mas no casamento as restrições não são impostas de um dia para outro; acumulam-se na rotina diária sem que a gente se dê conta: as brigas entremeadas de declarações de amor, pedidos de perdão, presentes apaixonados. Nos momentos de reconciliação, ele dizia com ternura não pretender destruir em mim a sensualidade nem a vaidade feminina; desejava apenas que essas qualidades fossem reservadas exclusivamente para o homem que me amava acima de todas as coisas. Por isso, comprava vestidos vermelhos, minissaias e blusas decotadas capazes de fazer corar uma prostituta. Na hora de sair, ele me queria vestida de freira, sentada de costas para os homens; na volta, ao fechar a porta, implorava que eu soltasse os cabelos, vestisse aquelas roupas escandalosas e dançasse para ele no meio da sala.
Fiquei completamente perdida durante quatro anos de casamento. No quinto, começou a tomar corpo em mim a idéia de que a paixão existente entre nós havia se transformado. Estávamos doentes: ele por ter se deixado levar por aquela loucura, eu por me submeter a ela. Quando isso ficou  claro, quis voltar para a casa dos meus pais, mesmo contra a vontade deles, que não admitiam a hipótese de ter uma filha desquitada, mas o Elias ficou alucinado, ameaçou cortar os pulsos, dar um tiro no peito, suplicou perdão, jurou pôr fim àquela obsessão possessiva e fez mil promessas, nunca cumpridas.
Essas idas e vindas continuaram até a situação chegar ao limite; achei que nunca me libertaria daquela opressão angustiante e acabaria louca. Foi a sorte! O instinto de sobrevivência falou mais alto: se ele se opunha à separação, só me restava a alternativa de fugir.
Numa segunda-feira, com a ajuda  de uma prima, finalmente criei coragem: esperei Elias sair para trabalhar, juntei algumas roupas na mala e fui embora antes de receber o primeiro te lefonema do dia, dado religiosamente assim que ele pisava na loja. Enquanto esperava o elevador, o telefone tocou sem parar. Tomei um ônibus para o Rio Grande do Norte, onde o marido dessa prima tinha parentes que se dispuseram a me receber em segredo. Lá, três anos depois, conheci o Isidoro.

- O que devo dizer para seu Elias?
- Que não venha!
- A senhora tem certeza? Ele disse que desejava apenas vê-la.
- Doutor, não sei quantos dias ainda estarei por aqui, mas serão poucos. Procuro fingir que não percebo, para não entristecer ainda mais o Isidoro. Quero aproveitar todo o tempo ao lado desse homem que só me fez bem. Não quero desperdiçar nem um minuto com alguém capaz de me trazer lembranças desagradáveis nesta hora.
Quando cheguei ao consultório, seu Elias me aguardava com o rosto abatido. Levei-o até minha sala:
- Não tenho boas notícias. Ela não quer vê-lo, disse isso com tanta convicção que, se eu fosse o senhor, não insistiria.
Ele pôs a cabeça entre as mãos e chorou sem emitir nenhum som. Desviei o olhar para baixo, em respeito a sua dor. Quando conseguiu se controlar, tirou um lenço amassado do bolso do paletó, enxugou as lágrimas, pediu desculpas e foi embora, apoiado na bengala.




domingo, 2 de setembro de 2012

Carlos Drummond de Andrade - Carta


Carta

Há muito tempo, sim, que não lhe escrevo.
ficaram velhas todas as notícias.
eu mesmo envelheci: olha em relevo,
estes sinais em mim, não das carícias

(tão leves) que fazias no meu rosto:
são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol - posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto
à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto
a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

Carlos Drummond de Andrade - Lição de coisas

E Riobaldo começa a falar da Coragem:



(Da série "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 5).

(...) “Confesso. Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”
Pg. 46.

Aqui é possível fazer uma primeira distinção entre coragem, valentia e covardia.

Coragem é conseguir ultrapassar os receios quando se é fundamental tentar. O medo está presente na coragem e vem temperá-la, para que ela possa se equilibrar com a prudência. Coragem é seguir o ditado: “É hora de se usar a tática da gelatina: vai tremendo, mas vai”. A coragem remete, em sua etimologia, à palavra cordos, coração. E parece sugerir, desta forma, que inclui em si os sentimentos e emoções, e que está perturbado por estas não indica falta de coragem.

Coragem não é não sentir medo. Que mérito haveria em fazer algo sem nenhum resquício de medo? Em que precisei me superar, me alterar, para conseguir realizar, se não senti nenhum receio? O mérito está em sentir medo, mas sabendo ser importante, conseguir ultrapassá-lo e não paralisar.

Quando o medo toma a pessoa por inteiro, chegando a paralisá-la, estamos falando então da covardia. Está é quando a pessoa, diante da necessidade fundamental de tentar, se deixa imobilizar pelo medo. 

No polo oposto à covardia encontra-se a valentia, que é o agir intempestivo, sem nenhuma prudência. Essa valentia assustadora, aparentemente uma ação sem nenhum tipo de receio, na maior parte das vezes é justamente o contrario disto: é uma ação possuída pelo medo, agora já transformado muitas vezes em pânico. Esse tipo de ação, na maior parte das vezes, está direcionado ao fracasso.


Em postagem posterior, "E Riobaldo fala dos vários tipos de medo", baseado em um estudo de Maria Ângela Junqueira Reis, consideramos esse medo que, ou paralisa ou leva a valentia assustadora, fica melhor definido como temor. 

Então ficaria melhor se partíssemos do seguinte: quando se falar de coragem estamos também falando de medo. Quando se falar de valentia assustadora ou de covardia, estamos falando de temor, como tão bem esclareceu Maria Ângela.