quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Adélia Prado



“aos quarenta anos
não quero a faca
nem o queijo,
quero a fome”

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Otto Lara Resende


“Paulo morreu. Não, não estamos preparados. Confuso sentimento de que era preciso ter feito alguma coisa. Sim, era previsível. Mas não precisava ser irreparável”

Otto Lara Resende, ao receber o telefonema avisando da morte de seu grande amigo, Paulo Mendes Campos, já há muito com sérios problemas com a bebida.

E Riobaldo escuta a estória de Maria Mutema



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 21)

A história de Maria Mutema e Padre Ponte é tão importante neste romance que merecemos lê-la na integra. Então, aqui vai...

“Naquele lugar existia uma mulher, por nome Maria Mutema, pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade. Uma noite, o marido dela morreu, amanheceu morto de madrugada. Maria Mutema chamou por socorro, reuniu todos os mais vizinhos. O arraial era pequeno, todos vieram certificar. Sinal nenhum não se viu, e ele tinha estado nos dias antes em saúde apreciável, por isso se disse que só de acesso do coração era que podia ter querido morrer. E naquela tarde mesma do dia dessa manhã, o marido foi bem enterrado.

Maria Mutema era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção. O que deu em nota foi outra coisa: foi a religião da Mutema, que daí pegou a ir à igreja todo santo dia, afora que de três em três agora se confessava. Dera em carola – se dizia – só constante na salvação de sua alma. Ela sempre de preto, conforme os costumes, mulher que não ria – esse lenho seco. E, estando na igreja, não tirava os olhos do padre.

O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos, bemcriados e bonitinhos, eram “os meninos da Maria do Padre”. E em tudo mais o Padre Ponte era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santosóleos.

Mas o que logo se soube, e disso se falou, era em duas partes: que a Maria Mutema tivesse tantos pecados para de três em três dias necessitar de penitência de coração e boca; e que o Padre Ponte visível tirasse desgosto de prestar a ela pai-ouvido naquele sacramento, que entre dois só dois se passa e tem de ser por ferro de tanto segredo resguardado. Contavam, mesmo, que, das primeiras vezes, povo percebia que o padre ralhava com ela, terrível, no confessionário. Mas a Maria Mutema se desajoelhava de lá, de olhos baixos, com tanta humildade serena, que uma santa padecedora mais parecia. Daí, aos três dias, retornava. E se viu, bem, que Padre Ponte todas as vezes fazia uma cara de verdadeiro sofrimento e temor, no ter de ir, a junjo, escutar a Mutema. Ia, porque confissão clamada não se nega. Mas ia a poder de ser padre, e não de ser só homem, como nós.

E daí mais, que, passando o tempo, como se diz: no decorrido, Padre Ponte foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho; dava pena. Morreu triste. E desde por diante, mesmo quando veio outro padre para o São João Leão, aquela mulher Maria Mutema nunca mais voltou na igreja, nem por rezar nem por entrar. Coisas que são. E ela, dado que viúva soturna assim, que não se cedia em conversas, ninguém não alcançou de saber por que lei ela procedia e pensava.

Por fim, no porém, passados anos, foi tempo de missão, e chegaram no arraial os missionários. Esses eram dois padres estrangeiros, p’ra fortes e de caras coradas, bradando sermão forte, com forte voz, com fé braba. De manhã à noite, durado de três dias, eles estavam sempre na igreja, pregando, confessando, tirando rezas e aconselhando, com entusiasmados exemplos que enfileiravam o povo no bom rumo. A religião deles era alimpada e enérgica, com tanta saúde como virtude; e com eles não se brincava, pois tinham de Deus algum encoberto poder, conforme o senhor vai ver, por minha continuação. Só que no arraial foi grassando aquela boa bem-aventurança.

Aconteceu foi no derradeiro dia, isto é, véspera, pois no seguinte, que dava em domingo, ia ser festa de comunhão geral e glória santa. E foi de noite, acabada a benção, quando um dos missionários subiu no púlpito, para a prédica, e tascava de começar de joelhos, rezando a salve-rainha. E foi nessa hora que a Maria Mutema entrou. Fazia tanto tempo que não comparecia em igreja; por que foi, então, que deu de vir?

Mas aquele missionário governava com luzes outras. Maria Mutema veio entrando, e ele esbarrou. Todo o mundo levou um susto: porque a salve-rainha é oração que não se pode partir em meio – em desde que de joelhos começada, tem de ter suas palavras seguidas até ao tresfim. Mas o missionário retomou a fraseação, só que com a voz demudada, isso se viu. E, mal no amém, ele se levantou, cresceu na beira do púlpito, em brasa vermelho, debruçado, deu um soco no pau do peitoril, parecia um touro tigre. E foi de grito:

– “A pessoa que por derradeiro entrou, tem de sair! A p’ra fora, já, já, essa mulher!”

Todos, no estarrecente, caçavam de ver a Maria Mutema.

– “Que saia, com seus maus segredos, em nome de Jesus e da Cruz! Se ainda for capaz de um arrependimento, então pode ir me esperar, agora mesmo, que vou ouvir sua confissão... Mas confissão esta ela tem de fazer é na porta do cemitério! Que vá me esperar lá, na porta do cemitério, onde estão dois defuntos enterrados!...”

Isso o missionário comandou: e os que estavam dentro da igreja sentiram o rojo dos exércitos de Deus, que lavoram em fundura e sumidade. Horror deu. Mulheres soltaram gritos, e meninos, outras despencavam no chão, ninguém ficou sem se ajoelhar. Muitos, muitos, daquela gente, choravam.

E Maria Mutema, sozinha em pé, torta magra de preto, deu um gemido de lágrimas e exclamação, berro de corpo que faca estraçalha. Pediu perdão! Perdão forte, perdão de fogo, que da dura bondade de Deus baixasse nela, em dores de urgência, antes de qualquer hora de nossa morte. E rompeu fala, por entre prantos, ali mesmo, a fim de perdão de todos também, se confessava. Confissão edital, consoantemente, para tremer exemplo, raio em pesadelo de quem ouvia, público, que rasgava gastura, como porque avessava a ordem das coisas e o quieto comum do viver transtornava. Ao que ela, onça monstra, tinha matado o marido – e que ela era cobra, bicho imundo, sobrado do podre de todos os estercos. Que tinha matado o marido, aquela noite, sem motivo nenhum, sem malfeito dele nenhum, causa nenhuma ; por que, nem sabia. Matou – enquanto ele estava dormindo – assim despejou no buraquinho do ouvido dele, por um funil, um terrível escorrer de chumbo derretido. O marido passou, lá o que diz – do oco para o ocão – do sono para a morte; e lesão no buraco do ouvido dele ninguém não foi ver, não se notou. E, depois, por enjoar do Padre Ponte, também sem ter queixa nem razão, amargável mentiu, no confessionário: disse, afirmou que tinha matado o marido por causa dele, Padre Ponte – porque dele gostava em fogo de amores, e queria ser concubina amásia... Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas, com ver o padre em justa zanga, ela disso tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez, pelo que ele não estava em poder de se defender de modo nenhum, era um homem manso, pobre coitado, e padre. Todo o tempo ela vinha em igreja, confirmava o falso, mais declarava – edificar o mal. E daí, até que o Padre Ponte de desgosto adoeceu, e morreu em desespero calado... Tudo crime, e ela tinha feito! E agora implorava o perdão de Deus, aos uivos, se esguedelhando, torcendo as mãos, depois as mãos no alto ela levantava.

Mas o missionário, no púlpito, entoou grande o Bendito, louvado seja! – e, enquanto cantando mesmo, fazia os gestos para as mulheres todas saírem da igreja, deixando lá só os homens, porque a derradeira pregação de cada noite era mesmo sempre para os ouvintes senhores homens, como conforme.

E no outro dia, domingo do Senhor, o arraial ilustrado com arcos e cordas de bandeirolas, e espoco de festa, foguetes muitos, missa cantada, procissão – mas todo o mundo só pensava naquilo. Maria Mutema, recolhida provisória presa na casa-de-escola, não comia, não sossegava, sempre de joelhos, clamando seu remorso, pedia perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela – exclamava – tudo isso merecia. No meio-tempo, desenterraram da cova os ossos do marido: se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia! Tanto por obra de Maria Mutema. Mas ela ficou no São João Leão ainda por mais de semana, os missionários tinham ido embora. Veio autoridade, delegado e praças, levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Araçuaí. Só que, nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre, para perdoarem também, tantos surtos produziam bemestar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa.”

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

E Riobaldo se irrita com as incertezas da vida


(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 20)

Riobaldo, ainda inquieto e sem conseguir dormir, continua sua conversa com Jõe. Os dois, depois da batalha, tinham essa dificuldade.

E Riobaldo questiona se jagunço, que vive em meio a “Pecados, vagância de pecados”, que “jagunço – criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando”, será se podia esperar de Deus perdão e proteção?

E se acha tolo por esperar boa resposta de Joe, “broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha?”  Riobaldo fica irritado com a primeira resposta do amigo, “– Uai?! Nós vive...” e o questiona de maneira tão veemente que um outro colega, que até então dormia, acorda e pede silêncio.

E Riobaldo explica o motivo de tanta irritação:

“Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados... Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado...”

Ele acabara de combater e, na luta, matara pessoas do grupo do Zé Bebelo e que tinham sido, antes, seus companheiros de bando. Agora lutava contra eles. Carecia mesmo de um motivo claro, de uma definição precisa, do certo ou do errado, do bom ou do mal...

Riobaldo, o homem sem certezas, anseia por respostas que não deixem dúvidas, anseia por perder justamente o que de melhor tem, ou seja, o seu inacabamento, o seu estar em aberto.

Diadorim não tinha dúvidas, não tinha medo, desconhecia até esse sentimento. Talvez por isso mesmo fascinou tanto a Riobaldo, desde o início. Quando se conheceram ele se espantou ao descobrir que aquele menino nem sabia o que era esse sentimento.

E passará grande parte do livro tentando se livrar do seu medo, de suas incertezas e inseguranças. E terá em Diadorim seu maior modelo, pois julga que ele é absolutamente corajoso. Mas Riobaldo se engana, Diadorim não é corajoso, ele é valente. Ao lhe faltar o medo fica desprovido também da prudência. Diadorim pagará com a morte seu desejo cego, inequívoco e absoluto de vingança. Riobaldo ao tentar ser como Diadorim, ao tentar não sentir medo, não só não alcançará a coragem pretendida com perderá o amor, ao perder Diadorim.

E Jõe Bexiguento, justo ele que causou tanta irritação em Riobaldo, resolve contar a estória de Maria Mutema. E assim, tal qual uma parábola, dá a Riobaldo a chave da compreensão de seus problemas mais profundos. Essa estória é nuclear no livro, o único conto completo dentro do livro, e trás em si o núcleo da temática do romance. Começaremos a falar de Maria Mutema na nossa próxima postagem.


Emily Dickson

Para a hora da esperança:

Sem saber como virá o amanhecer
Eu abro todas as portas.
Terá asas como um pássaro, 
Ondulará como as encostas?

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Alain de Botton - Religião para ateus

"Sentar-se à mesa com um grupo de estranhos tem o incomparável e insólito benefício de tornar um pouco mais difícil odiá-los impunemente. Preconceito e conflito étnico se alimentam da abstração. Contudo, a proximidade exigida por uma refeição - algo que tem a ver com passar as travessas para os outros, abrir guardanapos ao mesmo tempo e até mesmo pedir um saleiro a um desconhecido - perturba nossa capacidade de nos agarrar à crença de que estranhos que vestem roupas incomuns e falam com sotaques distintos merecem ser atacados ou mandados para casa. De todas as soluções políticas de grande escala que foram propostas para resolver conflitos étnicos  existem poucas maneiras mais eficazes para promover a tolerancia entre vizinhos desconfiados do que forçá-los a cear juntos."

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Flávia Moura Rangel Henriques



“Veio do mais sofrido dos meus pacientes, sete anos
E a vida?
Olhou para a janela
Olhou de novo e respondeu
Ensolarada!”

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Cora Coralina


Fechei os olhos e pedi um favor ao vento: Leve tudo que for desnecessário. Ando cansada de bagagens pesadas. Daqui para frente apenas o que couber no bolso e no coração.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

DA AÇÃO AO RISO




O Mestre estava de bom humor; por isso os discípulos procuraram ouvir dele as etapas pelas quais passara em busca das coisas divinas . 
— Primeiro Deus me conduziu pela mão — disse ele — para a Terra da Ação e lá morei por vários anos. Aí Ele voltou e me conduziu à Terra das Tristezas; lá vivi até que meu coração foi purificado de todo afeto desordenado. Foi aí que me encontrei na Terra do Amor cujas chamas flamejantes consumiram tudo o que me restava de individualidade em mim. Isso me levou à Terra do Silêncio, onde os mistérios da vida e da morte foram revelados diante de meus olhos. 
—Foi essa a última etapa de sua busca? — perguntam eles. 
—Não!—respondeu o Mestre.— Um dia, disse Deus:
‘Hoje eu te levarei ao mais recôndito santuário do Templo, ao coração do próprio Deus’. E fui conduzido à Terra do Riso.

(‘O ENÍGMA DO ILUMINADO’, DE ANTHONY DE MELLO, EDITORA LOYOLA)