quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

35. E Riobaldo é chamado à lealdade por Diadorim




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 35)

 Enfim libertos do cerco dos inimigos, Riobaldo oferece um presente a Diadorim.

“– “Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção...” – o qual era a pedra de safira, que do Araçuaí eu tinha trazido, e que à espera de uma ocasião sensata eu vinha com cautela guardando, enrolada numa pouca de algodão, dentro dum saquitel igual ao de um breve, costurado no forro da bolsa menorzinha da minha mochila.

De desde que falei, Diadorim quis muito saber o presente qual era, assim apertando comigo com perguntas, que sem aperreio deixei de responder, até de tarde, quando fizemos estância. A parança que foi – conforme estou vivo lembrado – numa vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais, de água muito simplificada. Aí, quando ninguém não viu, eu saquei a mochila, desfiz a ponta de faca as costuras, e entreguei a ele o mimo, com estilo de silêncio para palavras.”

Diadorim fica surpreso e, literalmente, de boca aberta. Mas, quase de imediato, recua e se endurece.

“Diadorim entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de suas mãos. Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério, apertou os beiços; e, sem razão sensível nem mais, tornou a me dar a pedrinha, só dizendo:

– “Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente assim, agora. Aí guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu recebo...””

Ele não se pode permitir o amor enquanto guarda o dever de vingança. Riobaldo pela primeira vez tenta convencer Diadorim a deixar o cangaço.

“– “Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já é o depois-de-véspera, que os vivos também têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus, nem sermão de sacramento. Não chegam os nossos que morremos, e os Judas que matamos, para documento do fim de Joca Ramiro?!””

Foi Diadorim ouvir e retrucou, com dureza:

“– “Riobaldo, você teme?””

Riobaldo diz que não se ofendeu e parece decidido no que pensa. Mas logo adiante mostra que ficou ofendido, sim. E Diadorim tenta chamá-lo ao compromisso antes assumido, de vingar a morte de Joca Ramiro.

“– “Tem que temerei! Você, aí faz o quem seu querer esteja. Eu viro minha boa volta...”

Dar o mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. Eu guardei a pedrinha na algibeira, depois melhor botei, no bolso do cinto; contei minhas favas, refavas. Diadorim respirava muito. Dele foi o relance:

– “Riobaldo, você pensa bem: você jurou vinga, você é leal. E eu nunca imaginei um desenlace assim, de nossa amizade...””

Há diferenças importantes entre fidelidade e lealdade. Somos fieis a normas. Somos leais a vida. Fidelidade é estar preso a uma norma ou combinado sem que as condições razoáveis para a manutenção do acordo ainda existam. Lealdade nunca é a alguém específico, mas a uma proposta ou condição que remeta àquilo que é vitalizado.

Os dois conceitos se relacionam diretamente aos conceitos de coerência e consistência. Sou coerente em relação às minhas ideias. Sou consistente em relação a minha vida. Se me aferro demasiadamente à coerência acabo facilmente manipulado: “Mas não foi isso que você disse antes!” Se sou consistente, simplesmente posso responder: “mudei”.

As crianças costumam ser naturalmente consistentes e leais. Se combinarmos com um sobrinho que levaremos um bombom para ele e, ao chegarmos à sua casa ele percebe que nos esquecemos, teremos diante de nós uma criança chateada, triste e provavelmente com raiva. Mas se, no instante seguinte, ela percebe um novo e interessante chaveiro em nossas mãos e começa a brincar com ele, teremos então uma criança novamente tranquila e envolvida. Essa aparente instabilidade recebe o nome adequado de estabilidade emocional. A criança é orientada pela vida. Queria o bombom. Esse não veio. Ficou chateada, mas não tem jeito. Chaveiro interessante? Dane-se o bombom! Ela é consistente com a vida. Não está nem um pouco preocupada em se aprisionar a alguma coerência.

Meu filho - acho que com dois anos - tinha há poucos dias parado de chupar o seu bico durante o dia, quando me pediu ele de volta.

- Papai, to com uma saudade do meu bico...

- É meu filho? Mas você já tá tão grandinho e nós já explicamos que o bico faz os dentes ficarem doentes...

- É... Mas to com uma saudade... Deixa só eu matar a saudade. Só um pouquinho... Menor que um cocô de cupim (devia ser a menor coisa que ele conhecia).

- Só um pouquinho mesmo?

- É!

- Então tá. Tá aqui o bico.

 Chup, chup, chup........ Alguns minutos depois...

- João, já passou o tempinho que combinamos. Me devolve o bico, agora que você já matou a saudade?

 - Papai, mudei de ideia.

Ri demais! Maravilhosamente consistente e leal a vida, esse meu filho!

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

34. E Riobaldo fala do ódio


 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 34)


Cercados na fazenda, atacados pelos inimigos, o bando se vê perigosamente encurralado. Zé Bebelo, então chefe do grupo, chama Riobaldo a um aposento e pede que ele escreva várias cartas a serem enviadas às autoridades das cidades próximas, comunicando que naquela fazenda estavam muitos cangaceiros em guerra e que essa era uma ótima ocasião para que os soldados atacassem grande bando de jagunços.

E Riobaldo teme que Zé Bebelo planeje uma traição. Ele, que já foi do lado do governo e combateu jagunços, estaria agora planejando, na hora que os soldados chegassem, se colocar como aquele que conseguiu que o governo matasse e prendesse tantos jagunços.

Riobaldo afronta Zé Bebelo com sua desconfiança. Ele explica que pretende aproveitar da confusão que se dará quando os soldados atacarem o bando que sitia a fazenda para fugir com todos dali.

Riobaldo não se convence com a explicação e passa a vigiar Zé Bebelo, na certeza de que o matará se ele tentar trair a todos.

Mesmo ferido, Riobaldo mata muitos inimigos. Sua pontaria ganha ainda mais fama.

O bando de Hermógenes e Ricardão atira nos cavalos, que estavam presos no curral. Riobaldo e seus colegas ficam horrorizados com isso, que consideram suprema crueldade. Os cavalos feridos gemem, bufam, agonizam. Mas, para surpresa de todos, o bando inimigo mesmo se responsabiliza por matar aos animais, acabando com o sofrimento deles. Todos dão graças a Deus. E Riobaldo, mais uma vez, percebe que nem mesmo os inimigos são de todo maus.

Os mortos são muitos e vão sendo amontoados num dos quartos da casa. Os dias passam, a luta continua, os cadáveres começam a feder.

Mas finalmente chegam os praças e a batalha entre eles e o bando que cerca a casa se inicia. E Hermógenes e Ricardão, atacados agora pela polícia, enviam um dos seus em missão de paz, para negociar.

Ao saber da proposta de paz dos inimigos, Diadorim fica sombrio. Ele se lembra da vingança que deseja, e teme que a negociação resulte numa paz que repugna. Tomado de ódio, ele lembra “do que não deve”. “Ele queria sangue fora das veias”.

“Mas aí espiei para Diadorim, e ele despertou do que tinha se esquecido, deixado, de sua mão, que ele retirou da minha outra vez, quase num repelão de repugno. E ele estava sombrio, os olhos riscados, sombrio em sarro de velhas raivas, descabelado de vento. Demediu minha ideia: o ódio – é a gente se lembrar do que não deve-de; amor é a gente querendo achar o que é da gente. – “O palavreado, destes!”– Diadorim chiou, por detrás dos dentes. Diadorim queria sangues fora de veias. E eu não concordava com nenhuma tristeza. Só remontei um pasmo e um consolo expedito; porque a guerra era o constante mexer do sertão, e como com o vento da seca é que as árvores se entortam mais. Mas, pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d’água, esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr.”

Riobaldo estava diverso de Diadorim, não concordando “com nenhuma tristeza. Ele volta a oscilar no dever de vingar. Sabe, até, que é no ódio e na vingança que eles tiravam forças: “a força unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira.” Mas sente também que o sentido daquilo tudo vai se perdendo a cada dia, que a sua soberania vai se distanciando cada vez mais. E vê que Diadorim não consegue vislumbrar que está aprisionado no ódio. O ódio o cegava, “O ódio de Diadorim forjava as formas do falso”.

Zé Bebelo acerta três dias de trégua. Ele “pensava era o útil, o seco, e a pressa”. Riobaldo estava equivocado, quando pensava que ele poderia trair. Na primeira noite após o acerto de suspensão de armas Zé Bebelo foge, com o bando todo, escapando do cerco.  

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

33. E Riobaldo fala da vingança




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 33)

 E Zé Bebelo volta. Em seu julgamento ficara decidido que ele só poderia voltar de Goiás se Joca Ramiro chamasse ou morresse. Joca Ramiro foi assassinado e ele volta, para liderar o bando na caça ao Hermógenes.

E depois de idas e vindas, o bando acaba cercado pelos inimigos, de surpresa, enquanto descansavam em uma fazenda. E o combate e as mortes começam.

Riobaldo volta a oscilar, em sua sede de certezas. Questiona a ruindade dos ex-companheiros que fugiram com Hermógenes, depois do assassinato e que agora estão dando duro fogo neles, que se encontram cercados e entrincheirados na fazenda.

“Surdo pensei: aqueles Hermógenes eram gente em tal como nós, até pouquinho tempo reunidos companheiros, se diz – irmãos; e agora se atravavam, naquela vontade de desigualar. Mas, por quê? Então o mundo era muita doideira e pouca razão? De perto, a doideira não se figurava transcrita.”

E Riobaldo tenta abafar seu discurso interno. Sente que enfraquece se ficar pensando demais. Tenta focar no ódio sem rumo, supondo que aí está a sua força.

“Sosseguei. Aí eu não devia de pensar tantas ideias. O pensar assim produzia mal – já era invocar o receio. Porque, então, eu sobrava fora da roda, havia de ir esfriar sozinho. Agora, por me valer, eu tinha de me ser como os outros, a força unida da gente mamava era no suscenso da ira. O ódio quase sem rumo, sem porteira.”

Ou, dito de outro modo:

“Para não se ter medo? Ah, para não se ter medo é que se vai à raiva.”

A batalha continua e Riobaldo, ao ver Diadorim combatendo, estranha a sua expressão, volta a oscilar e tem dificuldade em ver sentido em tanta morte e dor. Acha que sua terra não é ali, desconfia do que achava antes que era força e se vê novamente sem certezas.

“Desdenhei Diadorim. De ver Diadorim, que, em febre de acertar e executar, não tomava consigo muita cautela, só forcejava por vingança – punições maravilhosas. Diadorim, mesmo, a cara muito branca, de da alma não se reconhecer, os olhos rajados de vermelho, o encovo. Aquilo era o crer da guerra. Por que causa? Porque Joca Ramiro constava de assassinado morrido? A razão normal de coisa nenhuma não é verdadeira, não maneja. Arreneguei do que é a força – e que a gente não sabe – assombros da noite. A minha terra era longe dali, no restante do mundo. O sertão é sem lugar. A Bigri, mulher minha mãe, não tinha me rogado praga. Alta manhã – em tudo repetido o igual: o cantar do rifleio, afora o feder ruim dos mortos e cavalos, e a moscaria, que se esparramava. Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido ali, no extrato, no meio daquela diversidade, despropósitos, com a morte da banda da mão esquerda e da banda da mão direita, com a morte nova em minha frente, eu senhor de certeza nenhuma. Sem Otacília, minha noiva, que era para ser dona de tantos territórios agrícolas e adadas pastagens, com tantas vertentes e veredas, formosura dos buritizais. O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente? Adjaz que me aconformar com aquilo eu não queria, descido na inferneira. Carecia de que tudo esbarrasse, momental meu, para se ter um recomeço. E isso era. Pela última vez, pelas últimas. Eu queria minha vida própria, por meu querer governada.”

Ele queria recomeçar, queria de volta sua soberania, não viver orientado por tanto ódio, dor e vingança. E questiona se quer mesmo seguir com Diadorim nesse dever cego de vingar.

“A tristeza, por Diadorim: que o ódio dele, no fatal, por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho. Diadorim carecia do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via. Dois rios diferentes – era o que nós dois atravessávamos?”

Dizem existir dois tipos de vingança, a espanhola e a portuguesa.

A vingança portuguesa seria como cuspir para cima. O cuspe cai de volta na própria cara. Assim, as tentativas de vingança acabam prejudicando a própria pessoa que tenta se vingar. 

A vingança espanhola diz respeito a uma tradição das touradas espanholas. Quando nessas ocorria de o touro matar o toureiro a esposa do toureiro morto dançava para todos, na arena. Era como se dissesse: nós sabíamos que era um risco  ele morrer durante a tourada, e vou homenageá-lo dançando, mostrando a todos que o valor é a vida, que ela continua, e que não vou perder a graça. Seria assim uma forma de vingança estética – se é que se possa dizer isso -, com beleza e movimento, e que privilegiaria a vida e a graça.

Pode-se considerar como próprio de toda vingança a falta de soberania, uma vez que vingar seria mesmo o exemplo maior de uma ação sem autonomia, uma ação puramente orientada pelo outro. A vingança portuguesa se encaixa aqui. A vingança espanhola paradoxalmente não, é uma ação de parada e retomada, de reconhecimento do dano e retorno ao movimento da vida, com soberania. 

E Riobaldo parece sentir falta de sua soberania perdida.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Meditação pode ajudar paciente com doença inflamatória crônica, como asma



Fonte: UOL


Mais uma pesquisa mostrando os benefícios da meditação...

"O estresse exerce um papel importante em doenças inflamatórias crônicas, como artrite reumatoide, doença inflamatória intestinal e asma. Para pessoas que sofrem desses males, técnicas como a meditação podem trazer alívio para os sintomas. É o que mostra estudo feito por pesquisadores da Universidade de Wisconsin-Madison e do Centro Waisman, nos EUA.
O tipo de meditação avaliado no estudo foi a chamada "mindfulness" ("atenção plena", em inglês), que consiste em se concentrar na respiração, nas sensações corporais e no momento presente. Isso pode ser feito com a pessoa sentada, caminhando ou praticando ioga.
O estudo, publicado no periódico Brain, Behavior and Immunity, comparou dois métodos de redução de estresse: a meditação e um programa que incluía atividade física e terapia com música.
Os dois grupos receberam a mesma quantidade de treinamento e realizou as práticas com a mesma frequência e duração.
Segundo Melissa Rosenkranz, cientista do Waisman e principal autora do trabalho, a equipe usou uma ferramenta para induzir estresse psicológico nos voluntários, além de um creme que estimula a inflamação da pele.
As duas técnicas se mostraram úteis no combate ao estresse, mas a meditação se mostrou mais eficaz para reduzir a inflamação induzida por estresse.
Rosenkranz enfatiza que a meditação "mindfulness" não é uma pílula mágica, mas pode ajudar algumas pessoas. Além disso, pode ser um alternativa barata para complementar o tratamento de doenças."

Manipulação

(In Dicionário de Semiótica)
A operação é a ação do homem sobre as coisas. A manipulação é a ação do homem sobre outros homens, visando a fazê-los fazer algo. Manipular é uma pessoa fazer a outra fazer o que a primeira quer que seja feito.
Projetada no quadrado semiótico, a manipulação enquanto fazer-fazer enseja quatro possibilidades:
fazer-fazer           fazer não fazer
                                  (intervenção)       (impedimento)

         não fazer não fazer       não fazer-fazer
(deixar fazer)          (não-intervenção)

A manipulação é uma forma de interação entre duas ou mais pessoas na qual o manipulador impele o manipulado a uma posição de falta de liberdade (na qual ele não pode não fazer), a ponto de ser este obrigado a aceitar o contrato proposto.

Podemos considerar quatro formas principais de manipulação: intimidação, provocação, tentação e sedução.

Na intimidação e na provocação nos sentimos, quando manipulados, obrigado a fazer. Na tentação e na sedução, quando manipulados, sentimos que queremos fazer.

O manipulador pode exercer sua manipulação apoiando-se no poder, propondo ao manipulado objetos positivos (valores culturais) ou negativos (ameaças); em outros casos, ele se apoiará no saber fazendo com que o outro saiba o que ele pensa de sua competência sob a forma de juízos positivos ou nega­tivos. Assim, a manipulação segundo o poder caracteriza a tentação (em que é proposto algo positivo que lhe pode ser dado) e a intimidação (em que é feita alguma forma de ameaça).

O manipulador pode exercer sua manipulação apoiando-se no saber, através da provocação (através de um juízo negativo: "Tu és incapaz de ...") e a sedução (na qual se manifesta um juízo positivo: “Você é tão legal, faz isso pra mim...”).
Uma vez manipulado o sujeito como que perde a sua qualidade de sujeito, renunciando a sua soberania, ou seja, renunciando a sua liberdade e a sua independência. O comportamento impulsivo, aparentemente irrefletido, onde o sujeito somente reage a algo, e não realmente age (A ação verdadeiramente humana pressupõe a inteligencia verdadeiramente humana, ou seja, a capacidade de esperar que a realidade se manifeste por inteiro para, aí sim, escolher o curso de ação que se deseja.) também reflete a falta de soberania assim como evidencia que o sujeito foi manipulado.  

Quadrado Semiótico:





                                              soberania
poder-fazer           poder não fazer
(liberdade)           (independência)
altivez                                                                                  humildade
               não poder não fazer            não poder-fazer
  (obediência)              (impotência) 

                                               submissão

Soberania (liberdade + independência), sub­missão (obediência + impotência), altivez (liberdade + obediência) e da humildade (independência + impotência).

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

31. E Riobaldo fala da velhice



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 31)

Ainda tentando dar combate aos traidores que mataram Joca Ramiro o grupo de Riobaldo encontra o respeitado líder Medeiro Vaz.

“Medeiro Vaz, retratal, barbaça, com grande chapéu rebuçado, aquela pessoa sisuda, circunspecto com todas as velhices, sem nem velho ser. Cujo eu me disse: – “É bom homem...” E ele beijou a testa de Diadorim, e Diadorim beijou aquela mão. A um assim, a gente podia pedir a benção, se prezar.”

Medeiro Vaz “com todas as velhices, sem velho ser”.

A velhice pode ser vivenciada de diversas formas.

Pedro Nava disse que a velhice é um carro com os faróis voltados para trás. Neste modo de ver a experiência de vida não tem muito valor, não serve para o adiante. É uma velhice desesperançosa, onde não se espera muito do que está por vir.

Darcy Ribeiro, em seu livro “O Mulo”, bota o personagem narrador a dizer: “Velhice é isso. É não ter outros eus adiante para neles se desdobrar. Não tenho nenhum, estou resumido ao que agora sou. Meu eu de hoje é já meu eu de sempre. Com ele vou acabar. Amém.” E ainda: “Envelhecer é isso. É ir restringindo o mundo da gente, reduzindo a convivência, é ir-se resumindo até caber, inteiro, dentro da gente mesmo. Quando o recolhimento se completa, só resta morrer, e, enquanto não morrer, viver como eu vivo, pra dentro, enrustido. Ruminando idos vividos”.

Muitos de nós vivenciam essa velhice desesperançada sem mesmo ter uma idade mais avançada. Isso é ser evelhentado ou avelhentado, é ser envelhecido antes do tempo.

Posição diversa apresenta Aníbal Machado em seu livro “Cadernos de João”, ao dizer: “O espírito só tem uma idade: ou é sempre jovem, ou não é espírito. Tudo o mais é arquivo e reminiscência”.

Me lembrei desse trecho do Aníbal Machado quando liguei para minha mãe, para dar os parabéns pelos seus sessenta e tantos anos. Ela estava meio desanimada ao telefone e eu perguntei o motivo. "A idade... meu corpo já não acompanha meu espírito."

Recitei a passagem acima pra ela e comentei algo como: "É... seu corpo já não é o mesmo... nem o meu... Mas também é verdade que faz muito tempo que eu não lhe vejo tão animada com a vida como nesses últimos dois ou três anos. Você está cheia de projetos, fazendo um tanto de coisa, buscando coisas novas e recuperando umas antigas... Do ponto de vista do Aníbal, você está é bem jovem." Ela achou o texto muito interessante e reconheceu o que lhe disse. Desligou o telefone com a voz bem melhor.

Muitos anos atrás li uma entrevista de Mario Quintana, nunca mais localizada, por ocasião de seu aniversário de oitenta anos. Reconto de memória, e se algo não estiver de acordo com a entrevista real, pelo menos foi o que ficou como relevante.

A repórter pergunta se o poeta não tem saudade de sua juventude, de seus dezoito anos. Ele diz que não, que já tinha feito dezoito anos uma vez e que essa era a primeira vez que fazia oitenta. Ela pergunta se ele não sentia falta da força e do vigor da juventude. Ele diz que não, que não quer mais fazer as coisas que queria fazer quando tinha dezoito anos. Diz que quando jovem tinha muito medo do que vinha adiante e que nada se compara com a paz que adquiriu com a idade.

A repórter, aparentemente revoltada, meio que pergunta, meio que afirma que deve haver algo de ruim na velhice.

Mario Quintana diz que sim, há. Que ele já enterrou a maior parte de seus amigos e que isso é muito chato. Mas antes que a repórter se anime com isso, o poeta completa que já descobriu a saída pra esse problema. Diz que agora só faz amizade com brotinhos, só com gente de 60 anos. Sabe que tá de sacanagem, que esses novos amigos vão ter que enterrá-lo um dia... Mas que eles precisam passar por isso também.

Certamente a velhice trás, além da experiência, limitações e sofrimentos. Contudo alguns velhos parecem saber o segredo, não da juventude, mas da graça e da vitalidade. Martin Buber expressa muito bem essa possibilidade quando escreveu: “Ser velho é coisa gloriosa quando não se esquece o significado de começar... Não era de nenhuma maneira jovem (aquele ancião), mas era velho de uma maneira jovem, pois sabia como começar.”

Goya, grande pintor espanhol, já idoso, doente e acamado, e tendo passado em vida por dificílimas provações, rabisca esse desenho e escreve a legenda: ainda aprendo.






Por fim, na mesma linha que Aníbal Machado, José Bergamín nos presenteia com seu belo poema (tradução minha):





A velhice é uma máscara:
Se tu a tiras, descobres
O rosto infantil da alma.

A infância vai te seguindo
Durante toda a vida.
Mas ela vai mais devagar
E tu andas sempre depressa.

Quando a velhice lhe chega,
Não é que voltes à infância,
É que moderas o passo
E por fim a infância lhe alcança.

In Rimas y sonetos razagados



domingo, 13 de janeiro de 2013

O amor e o contato físico são necessidades biológicas


O amor é uma necessidade biológica, assim como o contato físico. Na década de 80 no Canadá, em um centro de terapia intensiva para recém-nascidos, os bebês ficavam em incubadoras fechadas e eram tratados evitando os contatos físicos. Essa era a orientação médica em todo o mundo, seja para os CTIs infantis, seja para os orfanatos: evitar o contato para se evitar a contaminação. Mas neste CTI do Canadá alguns pacientes tinham um crescimento mais rápido. Os médicos acabaram descobrindo que estes pacientes só tinham uma coisa em comum: eram cuidados por uma enfermeira novata. Ao conversar com essa enfermeira descobriram que ela, apesar das recomendações explícitas da época, de não tocar nas crianças para se evitar o risco de contaminação, sentia dó dos pequenos quando estes choravam e os pegava no colo e acariciava.

Os resultados foram confirmados em experimentos com filhotes de ratos separados da mãe ao nascer. Sem contato físico eles não cresciam. E era só passar um pincel úmido nas costas dos animaizinhos, simulando a lambida materna, que eles voltavam a se desenvolver. Sem o contato físico os batimentos cardíacos ficam até 50% abaixo do esperado e outras 15 funções fisiológicas são alteradas, do controle da temperatura corporal à imunidade.

Em pessoas, várias pesquisas já estabeleceram a importância da qualidade do relacionamento entre pais e filhos na determinação do equilíbrio do sistema parassimpático (que controla o ritmo cardíaco) anos depois. Em orfanatos onde internos  recebem pouco contato físico e afeto há maior índice de mortalidade por doenças comuns e até atrofia cerebral. Estudos britânicos e americanos apontam que a média de tempo de sobrevivência de idosos viúvos é muito mais curta do que a de homens da mesma idade cuja esposa ainda está viva, e o mesmo vale para pacientes em recuperação de câncer de próstata. Até mesmo a companhia de animais de estimação é comprovadamente eficaz para tentar restabelecer o equilíbrio.

Após a pesquisa canadense a recomendação aos CTIs neonatais e aos orfanatos se modificou, apontando a necessidade do contato físico e afetivo. No Brasil, a experiência com as “mães cangurus” (que ficavam com seus recém-nascidos precoces enfaixados, nus, em contato com seus corpos) confirmaram a enorme importância do contato pele a pele na saúde dos bebes.

Fonte: Curar, David Servan-Schreiber, Sá editora.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Pessimismo

O que é uma família senão o lugar em que se vive a tragédia de existir".
(Márcia Tiburi)

Ricardo Fenati nos presenteia com essa ponderação, a respeito do comentário acima: "Como em tudo o que é humano, as diferenças e as possibilidades estão presentes. Se a existência tem uma dimensão trágica, e tem, a dor de existir está aí para confirmar, tem também uma dimensão jubilosa, e a alegria ou o amor estão aí para confirmar. Famílias também são diversas:ora acentuam a dimensão trágica, ora abrem o horizonte do amor e da alegria. Sendo assim mais misturada, a existência vai além de qualquer definição mais rígida. Um tom mais pessimista dá a impressão de profundidade, assim é nossa época, mas isso não tem porque ser, necessariamente, verdade."

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

30. E Riobaldo vê o desespero de Diadorim com a morte do pai




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 30)

- “Mataram Joca Ramiro!...”

Diadorim se desespera. Riobaldo ainda não sabe, mas Joca Ramiro é pai de Diadorim.

“Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de Diadorim”:

“Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro. Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava. Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d’água, que com os dedos espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, sozinho se sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas. Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor. Ao que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se desgovernava.

– “Repete, Gavião!”

– “Ai, chefe, ai, chefe: que mataram Joca Ramiro...” –

“Quem? Adonde? Conta!”

“Antes mais, o pobre Diadorim. Alheio ele dava um bufo e soluço, orço que outros olhos, se suspendia nas sussurrosas ameaças. Tudo tinha vindo por cima de nós, feito um relâmpago em fato.”

– “... Matou foi o Hermógenes...”

– “Arraso, cão! Caracães! O cabrobó de cão! Demônio! Traição! Que me paga!...” – constante não havendo quem não exclamasse. O ódio da gente, ali, em verdade, armava um pojar para estouros. Joca Ramiro podia morrer? Como podiam ter matado? Aquilo era como fosse um touro preto, sozinho surdo nos ermos da Guararavacã, urrando no meio da tempestade.”

– “... O Hermógenes... Os homens do Ricardão... O Antenor... Muitos...”

“Aquilo foi à traição toda. Morreram os muitos, que estavam persistindo lealmente.”

E todos iam se reunir, para a vingança contra Hermógenes e Ricardão. Era outra guerra, agora.

E Diadorim sofre.

“Que o Hermógenes e o Ricardão de muito haviam ajustado entre si aquele crime, se sabia. O Hermógenes distanciou Joca Ramiro de Só Candelário, com falsos propósitos, conduziu Joca Ramiro no meio de quase só gente dele, Hermógenes, mais o pessoal do Ricardão. Aí, atiraram em Joca Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu sem sofrer. – “E enterraram o corpo?” – Diadorim perguntou, numa voz de mais dor, como saía ansiada. Que não sabia-o Gavião- Cujo respondeu; mas que decerto teriam enterrado, conforme cristão, lá mesmo, na Jerara, por certo. Diadorim tanto empalidecesse; ele pediu cachaça. Tomou. Todos tomamos. Titão Passos não queria ter as lágrimas nos olhos. – “Um homem de tão alta bondade tinha mesmo de correr perigo de morte, mais cedo mais tarde, vivendo no meio de gente tão ruim...” – ele me disse, dizendo num modo que parecia ele não fosse também jagunço, como era de se ser. Mas, agora, tudo principiava terminado, só restava a guerra. Mão do homem e suas armas. A gente ia com elas buscar doçura de vingança, como o rominhol no panelão de calda. Joca Ramiro morreu como o decreto de uma lei nova.”

E pela primeira vez cogitam que Riobaldo assuma a chefia do bando. Mas ele recusa.

“ – “Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria...” – no caminho o Alarípe me disse. Desmenti. De ser chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade.”

O bando se reúne com outros também dispostos à guerra e à vingança. E começa a caçada à Hermógenes. Mas até parece que o diabo o faz escapar da tentativa de cerco que armaram, despercebido. E os soldados chegam pra dar combate, complicando tudo. São muitos os confrontos com os praças. E Hermógenes se distancia.  



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

29. E Riobaldo tenta fugir, descobre que é mesmo amor e tenta negar





(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 29)


Acabada a guerra, Riobaldo e alguns membros do bando ficam em tempo de espera, meio que sem ter o que fazer. E neste tempo vago, Riobaldo pega o cavalo e sai, meio sem rumo. Cavalgou até chegar a um pequeno córrego. Deitou e dormiu.

Quando acordou viu Diadorim ao seu lado, de vigília.

“Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha ideia de fugir, tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu também não falei.”

E Riobaldo sente uma coisa.

“Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: – Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... – que era como se Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos voltando.”

E Riobaldo percebe ainda mais o tanto que gostava de Diadorim.

“Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros, com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor?”

Riobaldo parece que tentou fugir justamente quando não conseguia mais negar o que sentia por Diadorim.

 “Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo?

Mas ele não suporta essa verdade e tenta negá-la. Mas o rio continuará a correr no subterrâneo.

“O que sei, tinha sido o que foi: no durar daqueles antes meses, de estropelias e guerras, no meio de tantos jagunços, e quase sem espairecimento nenhum, o sentir tinha estado sempre em mim, mas amortecido, rebuçado. Eu tinha gostado em dormência de Diadorim, sem mais perceber, no fofo dum costume. Mas, agora, manava em hora, o claro que rompia, rebentava. Era e era. Sobrestive um momento, fechados os olhos, sufruía aquilo, com outras minhas forças. Daí, levantei. Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato. Só o que a gente pode pensar em pé – isso é que vale. Aí fui até lá, na beira dum fogo, onde Diadorim estava, com o Drumõo, o Paspe e Jesualdo. Olhei bem para ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar a imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado. – “Hê, Riobaldo, eh, uê, você carece de alguma coisa?” – ele me perguntou, quemme- vê, com o certo espanto. Eu pedi um tição, acendi um cigarro. Daí, voltei, para o rancho, devagar, passos que dava. “Se é o que é” – eu pensei – “eu estou meio perdido...” Acertei minha idéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, por paz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não, pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabar comigo! – com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimo punha barra em tudo. Ou eu fugia – virava longe no mundo, pisava nos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso – consolo que me determinou. Ah, então eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, precisei de dar um tiro – no mato – um tiraço que ribombou. – “Ao que foi?” – me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. – “Acho que um macaquinho miúdo, que acho que errei...” – eu expendi.Tanto também, fiz de conta estivesse olhando Diadorim, encarando, para duro, calado comigo, me dizer: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo!...” Assaz mesmo me disse. De por diante, acostumei a me dizer isso, sempres vezes, quando perto de Diadorim eu estava. E eu mesmo acreditei. Ah, meu senhor! – como se o obedecer do amor não fosse sempre ao contrário... O senhor vê, nos Gerais longe nuns lugares, encostando o ouvido no chão, se escuta barulho de fortes águas, que vão rolando debaixo da terra. O senhor dorme em sobre um rio?"

Riobaldo tenta se lembrar da canção que sempre busca, quando esbarra numa saudade.

“Ao que perguntei: e aquela canção de Siruiz? Mas eles não sabiam. – “Sei não, gosto não. Cantigas muito velhas...” – eles desqueriam.”

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

28. E Riobaldo fala um pouco sobre Joca Ramiro




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 28)

“Assim Joca Ramiro era homem de nenhuma pressa. Se abanava com o chapéu. Ao em uma soberania sem manha de arrocho”(...)

De novo Riobaldo fala da pressa, tema tão presente em suas reflexões. E diz do grande chefe, do homem líder muito admirado, Joca Ramiro, homem soberano e sem pressa. Cabe lembrar algumas reflexões de Julián Marías, filósofo espanhol, em seu livro “Tratado sobre a convivência”.

“Cada vez parece mais confirmada minha convicção de que sem uma considerável dose de bondade se pode ser “esperto”, mas não verdadeiramente inteligente. (...) A inteligência consiste sobretudo em abrir-se à realidade, deixar que ela penetre na mente e seja aceita, reconhecida, possuída.(...) Inteligência é compreender a realidade, o que é diferente de utilizá-la ou manipulá-la.

É característico do homem inteligente “esperar”, não precipitar-se, deixar que o que aparece ante seus olhos ou procura penetrar em seus ouvidos se manifeste por inteiro, exiba seus títulos de justificação, seja examinado por vários lados, de distintos pontos de vista. Essa é a razão pela qual as mulheres, quando de fato o são – ou seja, quando são fiéis à sua condição própria -, se revelam sumamente inteligentes, proporcionalmente mais do que os homens, tantas vezes apressados.”

Mariás parece fundamentar a associação entre a ausência de pressa e a soberania. Uma inteligência propriamente humana seria, nesse sentido, não apressar-se e deixar que a realidade se manifeste por inteiro. E aí sim, soberanamente, tomar uma direção. A pressa se aproxima aqui não só do temor, mas também da soberba.


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Trechos do "Grande Sertão: Veredas" de João Guimarães Rosa




“amigo, pra mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo”.


“Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada:  quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.”

“A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar.”

“... que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem saber;  e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato – que já se vendeu aos poucos, faz tempo?”


“Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma, na consciência;  para penar, não se carece:  bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque.  Digo ao senhor:  tudo é pacto.  Todo caminho da gente é resvaloso.  Mas, também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!”

“Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e está perto, ou o que está perto e parece longe.  Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe;  mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.”

“O senhor tolere minhas más devassas no contar.  É ignorância.  Eu não converso com ninguém de fora, quase.  Não sei contar direito.  Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém;  mas ele quer saber tudo diverso:  quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa.  Agora neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido.”

“O senhor espere o meu contado.  Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos que o escuro é claro.”

“Digo:  o real não está na saída nem na chegada:  ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
“Ah, mas falo falso.  O senhor sente?  Desmente?  Eu desminto.  Contar é muito, muito dificultoso.  Não pelos anos que já se passaram.  Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares.  O que eu falei foi exato?  Mas teria sido?  Agora, acho que nem não.  São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.”

“O senhor sabe?  Já tenteou sofrido o ar que é saudade?  Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração.”

“Comigo, as coisas não tem  hoje e ant’ontem amanhã:  é sempre.  Tormentos.  Sei que tenho culpas em aberto.  Mas quando foi que minha culpa começou?  O senhor por ora mal me entende, se é que no fim me entenderá.  Mas a vida não é entendível.”

 “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam.  Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.  De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente pessoa.  Sucedido desgovernado.  Assim eu acho, assim é que eu conto.  O senhor é bondoso de me ouvir.  Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.  O senhor mesmo sabe.”

“Não devia de estar relembrando isto, contando assim o sombrio das coisas.  Lenga-lenga! Não devia de.  O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho.  Mas talvez por isto mesmo.  Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito:  faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.  Mire veja:  o que é ruim dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si.  Para isso é que o muito se fala?

“Assaz o senhor sabe:  a gente quer passar um rio a nado, e passa;  mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou.  Viver nem não é muito perigoso?”

“Ser dono definitivo de mim, era o que eu queria, queria.”

“Mire e veja:  o mais importante e bonito, do mundo, é isto:  que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.  Afinam ou desafinam.  Verdade maior.  É o que a vida me ensinou.  Isso que me alegra, montão.”

“O senhor sabe:  há coisas de medonhas demais, tem.  Dor do corpo e dor da idéia  marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.”

“Viver é muito perigoso...  Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar!”

“Ah, eu estou vivido, repassado, eu me lembro das coisas antes dela acontecerem.”

“Moço:  toda saudade é uma espécie de velhice...  O amor, já de si, é algum arrependimento.”

“Jagunço é homem já meio desistido por si.”

“Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas:  ela rodeia é o quente da pessoa.”

“Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto.”

“No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam.  Melhor assim.  Pelejar por exato, dá erro contra a gente.  Não se queira. Viver é muito perigoso...”

“Sujeito muito lógico, o senhor sabe:  cega qualquer nó.  E – engraçado dizer – a  gente apreciava aquilo.  Dava uma esperança forte.”

“Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.  O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe.”

“Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor.”

“Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo.”

“Despedir dá febre.”

“A amizade dele, ele me dava.  E amizade dada é amor.  Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede:  pensando por prolongar.  Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade.”

“Não por orgulho meu, mas antes por me faltar o raso de paciência, acho que sempre desgostei de criaturas que com pouco e fácil se contentam.”

“Deveras se vê que o viver da gente não é tão cerzidinho assim.”

“Coração cresce de todo lado.  Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas.  Coração mistura amores.  Tudo cabe.”

“O que os meus olhos não estão vendo hoje, pode ser o que vou ter de sofrer no dia depois d’amanhã.”

“Ah, as coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente.”

“Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou.”

“... e, gostar exato das pessoas, a gente só gosta, mesmo, puro, é sem se conhecer demais socialmente.”

“Tu não acha que todo mundo é doido?  Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor?  Ou em horas em que consegue rezar?”

“A gente só sabe bem aquilo que não entende.”

“Então o mundo era muita doideira e pouca razão?”

“Tem de todas as coisas.  Vivendo se aprende;  mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

“Medo de errar.  Sempre tive.  Medo de errar é que é a minha paciência.”

“Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar.”

“Todos estão loucos, neste mundo?  Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.  Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos.”

“Eu queria ir pra ele, para abraço, mas minhas coragens não deram.”

“Só nos olhos das pessoas é que eu procurava o macio interno delas;  só nos onde os olhos.”

“O que era isso, que a desordem da vida podia sempre mais do que a gente?”

“Amigo, pra mim, é só isto:  é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado.  O de que um tira prazer de estar próximo.  Só isto, quase;  e os todos sacrifícios.  Ou – amigo –  é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é.”

“Eu sei:  quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade.”

“O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida.”

“Viver é um descuido prosseguido.”

“O diabo não há!  É o que eu digo, se for...  Existe é homem humano.  Travessia.”

“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava.  Não possuía os prazos.  Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp`ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede.  E me inventei neste gosto, de especular idéia.”
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De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho...





“Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias...  Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum se sossega:  todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons...  De sorte que carece de se escolher:  ou a gente se tece de viver no safado comum, ou cuida só de religião só.  Eu podia ser:  padre sacerdote, se não chefe de jagunços;  para outras coisas não fui parido.  Mas minha velhice já principiou, errei de toda conta.”

"Tivesse medo? O medo da confusão das coisas, no mover desses futuros, que tudo é desordem. E, enquanto houver no mundo um vivente medroso, um menino tremor, todos perigam - o contagioso. Mas ninguém tem a licença de fazer medo nos outros, ninguém tenha. O maior direito que é meu - o que quero e sobrequero -: é que ninguém tem o direito de fazer medo em mim!" (João Guimarães Rosa)


“O que mais penso, texto e explico :todo-o-mundo é louco.  O senhor, eu, nós, as pessoas todas.  Por isso é que se carece principalmente de religião:  para se desendoidecer, desdoidar.  Reza é que sara da loucura.  No geral.  Isso é que é a salvação-da-alma...  Muita religião, seu moço!  Eu cá, não perco ocasião de religião.  Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...  Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue.  Rezo cristão, católico, embrenho a certo;  e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque.  Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista:  a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles.  Tudo me quieta, me suspende.  Qualquer sombrinha me refresca.  Mas é só muito provisório.”
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“Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade.  E eu nunca tinha pensado nessa ordem.  Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas.  Agora, eu achava.  A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava.  E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias.  A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer.”

“Como não ter Deus?   Com Deus existindo, tudo dá esperança:  sempre um milagre é possível, o mundo se resolve.  Mas, se não tem Deus,  há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra.  É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos.  Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo.  Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma.”

“Medo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem
, no corpo dum rio grande.  Até pelo mudar.”

“Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência.”

“O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco caroço, querendo esquentar , demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças.  Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve.  Às vezes não é fácil.  Fé que não é.”

“Hê, de medo, coração bate solto no peito;  mas de alegria ele bate inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede.”

“Toda moça é mansa, é branca e delicada.”

“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”

“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.”

“Despedir dá febre.”

“A amizade dele, ele me dava.  E amizade dada é amor.  Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede:  pensando por prolongar.  Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade.”

“Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso – o que queria  e o que não queria, estória sem final.  O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.  O que ela quer da gente é coragem.  O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem.  Será?  Era o que eu às vezes achava.  Ao clarear do dia.”

“Sertão, - se diz - , o senhor querendo procurar, nunca não encontra.  De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”

“O senhor entende, o que conto assim é resumo;  pois, no estado do viver, as coisas vão enqueridas com muita astúcia:  um dia é todo para a esperança, o seguinte para a desconsolação.”

“O sertão é bom.  Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado...  O sertão é confusão em grande demasiado sossego...”

“Aqui digo:  que se teme por amor;  mas que, por amor, também, é que a coragem se faz.”

“Pois não é?  Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte.”

“Quieto; muito quieto é que a gente chama o amor:  como em quieto as coisas chamam a gente.”

“Minha Senhora Dona:  um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...”

“Sertão:  quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros:  eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé,  com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas...”

“... a colheita é comum,  mas o capinar é sozinho.”

“Viver – não é? – é muito perigoso.  Porque ainda não se sabe.  Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”