quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

46. E a guerra se aproxima




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 46)

Agora o grupo procura por Hermógenes, para consumar sua vingança. Riobaldo ordena que a mulher do dito cujo fosse levada, sob guarda, para o arraial do Paredão. Desconfiava que o bando do inimigo estivesse engrossado pelos sobreviventes do Ricardão e outros jagunços. Riobaldo envia sentinelas e batedores para tentar localizar o bando rival. Mas todos voltam sem notícias.

Riobaldo está inquieto. Ele pressente que o inimigo está próximo. Um ultimo olheiro chega, esbaforido, e conta que viu sinal do bando, ao que parece tentando dar o contorno no bando de Riobaldo e chegar por trás,  até onde foram deixados a mulher refém e só uns 10 homens.

Riobaldo divide o bando em dois. Metade fica ali mesmo, esperando. A outra metade, com ele junto, vai tentar ir até o Paredão, coisa de seis léguas, impedir o resgate da mulher do Hermógenes.

Quando faltava coisa de uma légua para chegar, novas noticias: o Trigoso retorna e vem dizer que umas três léguas abaixo viu um homem com uma moça que parecia ser Otacília, a noiva de Riobaldo.

Riobaldo se vê dividido: não pode deixar seus homens, com a guerra fungando nos cangotes. Mas também não pode deixar a noiva desprotegida no meio dessa desordem toda.

Riobaldo é o chefe, mas ainda é também o menino de antes. Se fosse só o urutu branco ia dar batalha com o bando e depois veria se achava Otacília. Mas ele ainda se angustia e sente medo. Resolve ir atrás da moça só com mais dois homens e manda o bando seguir caminho pro Paredão.

Diadorim faz menção de seguir com Riobaldo e ele se irrita.

Tu volta, mano. Eu sou o Chefe! – pronunciei. E ele, falando de um bem-querer que tinha a inocência enorme, respondeu assaz:
– “Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...”
Ainda vi como ele – com a mão, que era tão suave em paz e tão firme em guerra – amimava o arção do selim. Repostei um feio xingo. Bramei isso, porque o azo de Diadorim me transtornava. Dei de rédea. Com um raspo de galope, peguei junto com Alaripe e o Quipes, que mais adiantados me aguardavam. Nem espiei para trás – não ver que Diadorim obedecia, mas como devia de parar estacado lá, té que o meu vulto desaparecesse. Desjustiça.
(...)
Fui, com desejos repartidos.

Riobaldo passa a noite toda procurando em vão e, já no outro dia, resolve deixar seus dois homens ainda tentando achar e volta para o bando. E chega ao Paredão no fim da tarde. Diadorim fica feliz quando o vê. Riobaldo organiza seus homens. E se prepara para a guerra.

A noite chega.


quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

ACALME-SE:


A chave para lidar com sua ansiedade é aceitá-la totalmente. Você pode utilizar a estratégia do a.c.a.l.m.-s.e. e assim ficar apto a aceitar sua ansiedade até que ela desapareça.

1. Aceite a sua ansiedade.

Concorde em receber a sua ansiedade. Mesmo que lhe pareça absurdo no momento, aceite as sensações de seu corpo assim como você aceitaria em sua casa um hóspede inesperado. Substitua sua raiva, seu medo, sua rejeição por aceitação. Não lute contra sua ansiedade. Resistindo você estará prolongando e intensificando seu desconforto. Em vez disto, flua com ela.

2. Contemple as coisas em sua volta.

Não fique olhando para dentro de você, observando tudo e cada coisa que você sente, em uma auto-observação mórbida. Olhe em sua volta, observando cada detalhe da situação em que você está. Descreva-os minuciosamente para você, como um meio de afastar-se de sua observação interna. Lembre-se: você não é sua ansiedade. Quanto mais você puder separar-se de sua experiência interna e ligar-se nos acontecimentos externos, melhor você se sentirá. Esteja com ansiedade, mas não seja ela; seja um observador.

3. Aja com sua ansiedade.

Normalize a situação. Aja como se você não estivesse ansioso, isto é, funcione com sua ansiedade. Diminua o ritmo, a velocidade com que faz as coisas, mas mantenha-se ativo. Não se desespere, interrompendo tudo para fugir. Se você fugir, sua ansiedade imediata vai diminuir mas o seu medo vai aumentar, e na próxima vez sua ansiedade vai ser pior. Se você ficar onde está e continuar fazendo as coisas que já estava fazendo, tanto a sua ansiedade quanto o seu medo vão diminuir. Continue, pois, agindo, porem mais lentamente.

4. Libere o ar de seus pulmões, bem devagar!

Respire bem devagar, calmamente, inspirando pouco ar pelo nariz e expirando longa e suavemente pela boca. Conte até três, vagarosamente, na inspiração e até seis, na expiração. Faça o ar ir para seu abdome, estufando-o ao inspirar e deixando-o encolher ao expirar. Não encha os pulmões. Ao exalar não sopre: apenas deixe o ar sair lentamente por sua boca. Procure descobrir o ritmo ideal de sua respiração, e nesse ritmo agradável respire.

5. Mantenha os passos anteriores.

Aceite sua ansiedade, contemple o mundo a sua volta, aja com sua ansiedade e respire calma e suavemente. Sua ansiedade irá diminuir se você continuar repetindo estes quatro passos: aceitar, contemplar, agir e respirar.

6. Examine agora seus pensamentos.

Você deve estar antecipando coisas catastróficas. Mas você sabe que elas não acontecem! Você já passou por isso muitas vezes e nunca aconteceu nada do que você pensou que aconteceria. Examine o que você está dizendo para si mesmo e reflita racionalmente para ver se o que você pensa é verdade ou não. Lembre-se: você está apenas ansioso. Isto pode ser desagradável, mas não é perigoso. Você está pensando que está em perigo mas há provas irrefutáveis disto?

7. Sorria, você conseguiu!

Você merece todo o seu credito e o seu reconhecimento. Você conseguiu sozinho e com os seus próprios recursos tranqüilizar-se e superar este momento. Não é uma vitória, pois não havia um inimigo, apenas um visitante de hábitos estranhos que você passou a compreender melhor. Agora você sabe como lidar com visitantes estranhos.

8. Espere o melhor.

Livre-se do pensamento mágico de que você terá se livrado definitivamente de sua ansiedade, para sempre. Ela é necessária para você viver e continuar vivo. Você precisa dela e ele ocorrerá sempre que você estiver em perigo ou que você pensar que está em perigo. Donde é natural que ela ocorra. Em vez de considerar-se livre dela, surpreenda-se pelo jeito como você a maneja, como você acabou de fazer agora. Assim quando ela vier novamente você estará em boa posição para lidar com ela. Enriqueça sua memória com essa experiência, entre outras importantes em sua vida. Você se tornou uma pessoa diferente agora: mais realista, mais conhecedor de suas capacidades, mais seguro. Esta experiência vale um lugar de destaque em seu álbum de recordações.


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

45. Ricardão já foi. Agora só falta Hermógenes




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 45)

E Riobaldo consegue atravessar o deserto com seu bando. E por esse caminho insuspeito chegam de surpresa na fazenda de Hermógenes. E tudo destroem.

Daí, só se esperou o listrar da primeira barra e a ponta da manhã estremecente. Segundo nosso uso. Demos fogo. Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via disso mesmo resumo; não gloso. No fim, o senhor me completa. Mas, fazia tempo que não se dava combate, e o propor da gente era tribuzana, essas ferocidades assim.
(...)
Aqueles que estavam lá eram homens ordinários – derreteram debaixo do pé de meus exércitos. O que foi um desbarate! Como que já estavam de asas quebradas, nem provaram resistências: deles mal ouvi uns tiros. E a gente, nós, estouramos para o centro, a surto, sugre, destrambelhando na polvorada, feito rodeio de vento. Assaz. Do que fiz, desisto. Todos não fizeram? Volvido, receei que Diadorim não me aprovasse; mas Diadorim concordou com os fatos, em armas, em frente. O que se matou e estragou – de gente humana e bichos, até boi manso que lambia orvalhos, até porco magro em beira de chiqueiro. O mal regeu. Deus que de mim tire, Deus que me negocie... À vez.

De novo o autor não permite que nos agarremos – como ordinário bem gostamos – à lógica dicotômica, onde o bom está de um lado e o mal do outro, onde o herói nunca é cruel. O autor tenta nos livrar das amarras do estereótipo, do sentido único e nos lançar na liberdade da incerteza e da pluralidade. Em todo o romance é isso. Uma luta contra o clichê que aprisiona a linguagem e a vida.

E o bando aprisiona a esposa de Hermógenes. E botam fogo na casa. E agora esperam que o inimigo venha buscar a mulher, venha combater.

Riobaldo sobe um morro para olhar mais longe.

E poupa a vida de um velho que um jagunço mais inexperiente estava para matar. E conversa com ele sobre o sertão.

- “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: – ... ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo.”

Algumas andanças depois e eles encontram um dos chefes inimigos, Ricardão. E a batalha começa.

E estralou bala... Repisei em minhas estribeiras, apertei as pernas nas espendas. Eu tinha de comandar. Eu estava sozinho! Eu mesmo, mim, não guerreei. Sou Zé Bebelo?! Permaneci. Eu podia tudo ver, com friezas, escorrido de todo medo. Nem ira eu tinha. A minha raiva já estava abalada. E mesmo, ver, tão em embaralhado, de que é que me servia? Conservei em punho meu revólver, mas cruzei os braços. Fechei os olhos. Só com o constante poder de minhas pernas, eu ensinava a quietidão a Siruiz meu cavalo. E tudo perpassante perpassou. O que eu tinha, que era a minha parte, era isso: eu comandar. Talmente eu podia lá ir, com todos me misturar, enviar por? Não! Só comandei. Comandei o mundo, que desmanchando todo estavam. Que comandar é só assim: ficar quieto e ter mais coragem.
Mais coragem que todos. Alguém foi que me ensinou aquilo, nessa minha hora? Me vissem!

E quando a guerra para o meu lado relambeu, feito repentina labareda dum fogo. Uns vieram. E os tiros – deles, – bala batia e rebatia. Cortavam capim do chão, que riscavam com punhado de terra. Tch’avam partes de ramos da árvore por cima de mim, e vagens do angico, que então reconheci por isso. Como quieto fiquei. Eu não era o chefe? Mesmo que uma carga de rifle se passou em meu chapéu-de-couro-de-vaca, e que outra, zoante, em meu jaleco raspou. A mil, que não movi mão, mas dei desprezo.
(...)
Morresse – tive preguiça de pensar – mas, morresse, então morria três-em-pé, de valente: como o homem maior valente no mundo todo, e na hora mais alta de sua maior valentia! À fé, que foi.

Riobaldo segue sua busca por mais coragem. Quer ser o maior dos valentes, quer se esquecer de todo o medo que já sentiu. E quer que todos vejam, aprisionado que está na opinião alheia. Ele ainda tem vergonha de si, do tempo em que sentiu medo.

O bando de Riobaldo ganha a batalha. E cerca Ricardão numa tapera. E Ricardão morre. Agora só falta o Hermógenes.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

44. E Riobaldo encontra seu Medo-Demo ao atravessar o deserto




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 44)

E Riobaldo acha sua missão, atravessar o liso do Sussuarão, o terrível deserto que antes, sob outra liderança, tentaram atravessar e tudo deu errado. Tiveram que voltar do meio pra trás, muitas mortes e desespero. Mas Riobaldo agora faz diferente, com menos preparo e bagagens, o grupo mais leve vai mais fácil.

E com grupos esparsos, distantes uns dos outros, mas alcançáveis pela vista ou pelos gritos, vão localizando algum alimento e água pelo caminho e seguindo.

E Diadorim diz a Riobaldo, com amor e ainda durante a travessia que, quando tudo acabar lhe contará um segredo. Mas Riobaldo, longe de si, não entende verdadeiramente o que Diadorim quer dizer.

- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” – ele disse; e de medo não tremia, que era de amor – hoje sei.
- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...”
Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade.

Riobaldo tenta se justifica considerando que precisava estar atento a coisas mais graves. E encontra um homem demo.

Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o homem rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade: um, troncudo, pardaz, genista, filho não sei de que terra. Assim, casta de gente?

Era um louco desajustado, de quem ele até sabia o nome: Treciziano.

Impaciente, ele grita e xinga alguma coisa, com intuito de ofensa.

Eu queria tolerar, primeiro: porque o demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva. Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem pau nem pedra.

Mas Riobaldo vê o vislumbre da cólera no rosto do homem. Diz que ele era o Demo. E o louco tenta esfaquea-lo, mas atinge as tralhas que Riobaldo levava na cintura. Riobaldo, num átimo, o degola com seu punhal. Morto ele cai.

Ah-oh! Aoh, mas ninguém não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, era mesmo o do Treciziano! A morte dele deu certo. E era, segundo tinha de ser? E tinha de ser, por tanto que o demo não existe!

Riobaldo se sente mal.

Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores disso – da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo.

Os companheiros de bando o elogiam. Sua fama com a pontaria já era conhecida, mas agora ele matou na faca.

Na primeira vez que o bando tentou atravessar o deserto e teve que voltar, quase mortos, houve também uma morte semelhante. Encontraram o que parecia um macaco, mataram e comeram, desesperados de fome. E descobriram não ser um macaco, mas um homem perdido e louco, desfigurado.

Agora, quase a terminar a travessia encontram outro homem quase não homem, o homem demo. E também o matam.

O deserto desfigura o que de humano há em nós?

Esse segundo morto é denominado por Riobaldo de demo. Demo é anagrama de medo. É só trocar as letras de lugar. Riobaldo discute todo o tempo neste livro se o diabo existe ou não. E busca também todo o tempo se livrar de seu medo e ser valente como Diadorim. O medo é o demo de Riobaldo. E é muito sugestivo que essa morte ocorra justo no fim da travessia do deserto, justo na hora que Diadorim lhe diz que, terminada a vingança, vai lhe contar um segredo.

É Riobaldo matando seu Demo-Medo, é Riobaldo não escutando o que Diadorim lhe diz, é Riobaldo que não pode ver o que está diante de si.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A morte do Dito

Estavam levando o corpo do Dito, na bacia grande.
Mãe segurava com jeito o pezinho machucado doente, como caso pudesse doer ainda no Dito, se o pé batesse na beira da bacia. O carinho da Mãe segurando aquele pezinho do Dito era a coisa mais forte neste mundo.

guimarães rosa
in corpo de baile

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

43. E Riobaldo encontra um homem com lepra




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 43)

Riobaldo inicia novo hábito, sair de madrugada, na escuridão, e voltar já com o café cheirando. Numa dessas voltas ele encontra em cima dos galhos de uma arvore um homem escondido.

E era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo, um terminado.

Riobaldo sente horror frente ao doente. E resolve matá-lo.

Eu tinha de esmagalhar aquela coisa desumana.

- “Ô guaimoré!” – xinguei. E gritei pulhas. Acho que insultava era por de certo modo retardar meu dever?

E, quando mira da cabeça do homem, ouve alguém se aproximando a cavalo. É Diadorim. Riobaldo embolsa a arma. E sai a galope.

Mas eu virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo: rompemos em galope que era um abismo...

Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado no lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a coisa viva, e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos.

E Riobaldo fala de seu nojo.

A enquanto sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo muito longe, neste mundo, tudo restava em doente e perigoso, conforme homem tem nojo é do humano.

Temos nojo daquilo que foge da ordem, do estabelecido, daquilo que sentimos que está fora do lugar. A saliva trocada durante um beijo carinhoso não enoja. Mas a mesma saliva vira cuspe se arremessada em nossa direção, se deixada cair em nossa boca. Riobaldo, depois de tornado chefe, tem nojo daquilo que nele lembra quem ele de fato é, daquilo que nele lembra o humano que carrega em si.

Humano remete a terra, solo, em sua etimologia. Somos filhos da terra, em detrimento dos filhos dos deuses, extraordinários inumanos. Humilde trás em si essa mesma relação, etimologicamente remete ao de baixa estatura, próximo ao solo.

Riobaldo sentia sua condição anterior como falha e limitada e fora do que deveria ser. Ele deveria ser um ser sem medo nem temor. Ele deveria não hesitar nem ter dúvidas. Mas, por mais que tenha mudado depois do pacto – que nem houve -, Riobaldo sente dentro de si a presença dele mesmo, daquele que sempre foi, de sua profunda humanidade. E tem nojo, ela é imperfeita, não está na ordem ideal que ele almeja. E, tal como o lazarento, deve ser purificada, eliminada.  

Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso.

Riobaldo volta a galope, arma em punho. Mas a deixa cair ou, não sabe bem, é como se alguém arrancasse a arma de sua mão.  

Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia mão, rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado para se ir, graças que não assisti à arriação dele: decerto descendo às pressas, se escapando de gatas nas moitas de feijão-bravo. Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por não saber se matava ou não matava, caso ele ainda estivesse lá.

Mas, ao ver Diadorim próximo Riobaldo se abala.

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança.

Era mais uma coisa saindo da ordem. Riobaldo tenta colocar tudo no lugar certo, novamente.

Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli?

É, ele tentou repelir, mas não sabe mesmo se conseguiu. E segue Riobaldo lutando sua luta mais dura: a consigo mesmo.

42. E Riobaldo tem mostras do amigo que é Diadorim


42. E Riobaldo tem mostras do amigo que é Diadorim

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 42)

Certo grego já disse que, para diferenciar um amigo de um bajulador é importante observar como a pessoa se porta quando a fortuna nos sorri, quando as coisas nos engrandecem e nos fazem sentir maiores do que somos. O bajulador, agora que somos os tais, vem a nos adular e a ressaltar assim nosso auto-engano, nossa ilusão de que nossa frágil e humana condição foi superada. O amigo não, esse vem tentar nos trazer de volta a terra, nos atentar para nossa vaidade e da importância de se relembrar o que realmente tem valor em nossa vida.

Eis Diadorim a tentar acordar Riobaldo do entorpecimento de quando a fortuna lhe sorriu, de quando virou o novo chefe.

E era o que Diadorim agora desfazia em mim, no amargoso.
- “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer dansação e desordem...”

Riobaldo não gosta muito do que ouviu.

Mexi meu cuspe dentro da boca.

Diadorim continua.

- “ ... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste mais... E o que está demudando, em você, é o cômpito da alma – não é razão de autoridade de chefias...”

Riobaldo sente a amizade de amor na voz de Diadorim. Mas tem dificuldades, mesmo assim, de receber o dito.

Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as certas sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a qual é arraial escondido por detrás de sete serras? Aí, demorei. Eu ia aceitar essa repreensão? Ah, nunca.

Mas Riobaldo fica preocupado, Diadorim falou da alma. Como poderia ele saber da noite na encruzilhada, tentando o pacto? E o pacto nem ocorreu...

Não vê, que nem precisava. Eu tinha guardado meus ouvidos. Eu não queria escutar o reto, naquela ocasião, por desânimo de ser. Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse, não soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte em que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas, no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo? E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão pois. O pacto nenhum – negócio não feito. Aprova minha, era que o Demônio mesmo sabe que ele não há, só por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa, podia carregar nômina; rezo o bendito!

Diadorim estranhava os novos comportamentos de Riobaldo. Como quando se defrontou com nhô Constâncio Alves e resolveu, do nada, que teria que matá-lo. Mas é verdade que ficou dividido, matava ou não matava? E arrumou uma solução alternativa: faria a ele uma pergunta. Respondendo mal, morreria.

Aí a pergunta seguinte: - “Se sendo que o senhor é de minha terra, a pois: conheceu um homem que se chamava Gramacedo? Será, o senhor é parente dele?”

Só esperei. Ele dissesse que tinha conhecido o outro, e, aí, morria, por eu não poder não-matar; por quanto a salvação dele mermava, que nem morrão de candeia. E assim, com obrigação minha mesma, eu tinha para sempre combinado.

Mas, quando a mão de Riobaldo já tinha pousado no revólver, Nhô Constâncio Alves disse que não tinha conhecido ninguém com esse nome.

Riobaldo decide não matá-lo. Mas quando ele vai embora, diz a todos, novamente tentando se impor poderoso:

- “Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir, destas estradas, paga!”

Eu disse. Eu ia cumprir?

E mais adiante encontram um sujeito, que vinha montado numa égua, acompanhado por um cachorrinho. Riobaldo vai se convencendo que ele merece morrer, que não merece dó. Ele pergunta pro menino que segue com o bando, o Guirigó, se deveras mata este homem. O sujeito parece escutar a conversa e começa a tremer.

E Riobaldo perde a vontade de matar. Por mais que queria eliminar de si qualquer delicadeza, segue não conseguindo. Queria permitir que o homem fosse embora. Mas se sentia na obrigação de matar. Porque não podia voltar atrás na palavra dada. E começa a arrumar justificativas. Diz que viu primeiro o cachorrinho, e que ele é que deve morrer. E manda soltar o homem e mandá-lo embora.

O povo começa a preparar o bicho para a execução e Riobaldo fica com dó de novo. E agora diz que viu primeiro foi a égua. Mas um colega de bando acaba vendo valor na égua, e pede pra ficar com ela. E Riobaldo então diz:

Delibero o certo: o primeiro que eu vi, foi essa égua. Ela tinha de receber a morte... Ah, mas égua não é gente, não é pessoa que existe. E que? Ah, então, não é cabível que se mate a égua, por tanto que a minha palavra decidida era de se matar um homem!

Não executo. A alçada da palavra se perdeu por si e se gastou – pois não está dito? Acho e dou que o negócio veio ao terminado.”

Verdadeiramente, com alegria, foi que todos me aprovaram. Ou seja que me admiravam em real, pela esperteza de toda solução que eu achava(...)

Riobaldo volta a interrogar Diadorim, sobre o recado que teria mandado a alguém, ainda incomodado com o amigo. Descobre que o recado foi para Otacília, sua noiva.

Diadorim esperou, sempre com serenidade. O amor dele por mim era de todo quilate: ele não tartameava mais de ciúme nem de medo. Disse assim:

- “Pedi a ela que rezasse por você, Riobaldo... Assim pela esperança de saudade que ela tivesse, que não esbarrasse de rezar, o todo tempo, por costume antigo...”

Riobaldo retruca.

- “Ah, não! Ah, você acha que eu careço de suas rezas orações, por minha ajuda, Diadorim?”

- “Acho, de manhã à noite, Riobaldo... Demais. Nem sei mesmo se alguém te botou o malefício... Tua mãe, mesma, que estivesse viva, achava...”

Riobaldo se envergonha e se ofende. Ainda não consegue receber o amigo que com ele se preocupa.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

41. E Riobaldo se defronta com o menino

 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 41)


Riobaldo agora pede que seus homens busquem nas redondezas todos aqueles que possam ajudar na guerra contra Hermógenes. E chegam as pessoas, algumas daquele lugarejo miserável e tomado pela peste, outras loucas abandonadas nos ermos lugares. E Riobaldo se pergunta se estaria cometendo alguma perversidade ao retirar essas pessoas de suas famílias e lugares. Pensa para si que não, que estava é retirando aquelas de suas misérias.

E saíram pelo sertão. Com alguns dias de viagem os guerreiros mais antigos vieram avisar que só se tinha três dias de farinha e carne-seca. Riobaldo julga a preocupação uma tolice. Também desconsidera o cuidado habitual de repartir o pessoal em grupos menores.

Cautelas... Que não. Eu fosse ter cautela, pegava medo, mesmo só no começar.

E vai Riobaldo tentando se afastar do medo. E vai tomando gosto em ver as pessoas com medo dele. Mas permanece receoso de ter o respeito por sua pessoa em algum momento rebaixado. E se critica:

Isso de estimar os outros, muito ligeiro, defeito esse que me entorpecia.

É Riobaldo a batalhar com seu espírito delicado, como se sua delicadeza fosse algum tipo de fragilidade.

E Diadorim estava mais silencioso, algo triste. E Riobaldo pensa que desde que virou o chefe via Diadorim mais afastado.

E vai gostando de ver o medo que inspira, ao passar com seu bando.

Apreciei de ver como todos souberam jeito de esconder o medo que de mim deviam de ter.

E chega agora o livro a um de seus trechos mais belo. E é curioso, esse trecho justo aqui, onde Riobaldo luta para se desvestir de sua delicadeza e cuidado e começa a gostar de ser temido. Eis que surge nesse exato ponto um trecho natalino, o nascimento de um menino, o novo a despontar, em sua natural beleza e fragilidade. Eis a belezura:

Da mulher – que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, essa mulher assistindo num pobre rancho. Nem rancho, só um papiri à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta – que era simples encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - “Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...” Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” – e saí para as luas.

É certo que Riobaldo julga que nesse trecho realizou grande obra. Afirmou novamente seu poder e autoridade, deu dinheiro e exigiu seu nome na criança. Mas “um menino nasceu – o mundo tornou a começar!” Trata-se aqui da vida surgindo novamente, inacabada, frágil e bela, iniciante, palmeando a realidade. O autor vem novamente bagunçar nossos conceitos. Vem balançar as categorias rígidas que gostamos tanto de usar para avaliar a realidade. Vem nos deixar com dificuldades de classificar afinal, o que se passa, qual o significado disso tudo?

É como se dissesse: É, Riobaldo. Já tem poder e mando. E a vida segue surgindo, inacabada e bela, apesar de você e junto a você.

E Riobaldo segue sua sina de chefe.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

40. E Riobaldo continua a se impor, para se afirmar como chefe




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 40)

Riobaldo agora é o chefe. E se sente muito diferente. Parece que todas as nodoas do passado foram limpas.

Aí eu mandava. Aí eu estava livre, a limpo de meus tristes passados. Aí eu desfechava. Sinal como que me dessem essas terras todas dos Gerais, pertencentes. Por perigos, que por diante estivessem, eu aumentava os quilates de meu regozijo. À fé, quando eu mandasse uma coisa, ah, então tinha de se cumprir, de qualquer jeito. - “Tenho resoluto que!” – e montei, com a vontade muito confiada.

Mas agora ele tem a necessidade de se fazer conhecer, ele precisa do olhar alheio sobre si. O que sugere que as nódoas, mesmo que esmaecidas, ainda se faziam visíveis.

Era primeira viagem saída, de nova jagunçagem; e as extraordinárias cousas, para que todos admirassem e vissem, eu estava em precisão de fazer.

E Riobaldo dá uma ordem de mando para o rico fazendeiro, Seô Habão. Que ele leve a pedra, o presente que ele tinha guardado por muito tempo para Diadorim, para entregar a Otacília, que ele considera como noiva.

E ao olhar Diadorim percebe que ele está muito triste, tentando conter suas lágrimas. Percebe com total lucidez que estava assim por causa da pedra que lhe tinha sido ofertada, como presente de estima, antes.

Eu não tinha tido dó de Diadorim. “Dei’stá’, tem tempo, Diadorim, tem tempo...” – pensei, a meio. Da amizade de Diadorim eu possuía completa certeza. E mais não me amofinei. De manhã cedo, o senhor esbarra para pensar que a noite já vem vindo? O amor de alguém, à gente, muito forte, espanta e rebate, como coisa sempre inesperada. E eu estava naquelas impaciências. (...) Aquela tristeza de Diadorim eu não aceitei, nem ceitil não recebi. Ingratidão, para o mais-tarde.

E continua o processo de endurecimento de Riobaldo, em busca da valentia. Ele não parece surpreso com a reação de dor de Diadorim, ao ver a pedra sendo enviada à Otacília. Talvez mesmo tenha feito o ato como a avisar a Diadorim – e a todo o resto, e inclusive a si mesmo – que agora ele não hesita nem tem medo. Se ele afronta e desdenha seu maior amigo e amor, o que faria com outro qualquer?

Mas um olhar mais acurado perceberia as fissuras por trás de toda aquela dureza. A potência que, para se manifestar, precisa de uma imposição de força injustificável, já dá mostras de suas fragilidades. Riobaldo precisa se mostrar certo e sem hesitações justo por ainda sentir, dentro de si, o medo que lhe pertence.



Sobre fidelidade e lealdade


Há diferenças importantes entre fidelidade e lealdade. Somos fieis a normas. Somos leais a vida. Fidelidade é estar preso a uma norma ou combinado sem que as condições razoáveis para a manutenção do acordo ainda existam. Lealdade nunca é a alguém específico, mas a uma proposta ou condição que remeta àquilo que é vitalizado.

Os dois conceitos se relacionam diretamente aos conceitos de coerência e consistência. Sou coerente em relação às minhas ideias. Sou consistente em relação a minha vida. Se me aferro demasiadamente à coerência acabo facilmente manipulado: “Mas não foi isso que você disse antes!” Se sou consistente, simplesmente posso responder: “mudei”.

Arnaldo Antunes disse algo a respeito em sua música "Sou volúvel".



As crianças costumam ser naturalmente consistentes e leais. Se combinarmos com um sobrinho que levaremos um bombom para ele e, ao chegarmos à sua casa ele percebe que nos esquecemos, teremos diante de nós uma criança chateada, triste e provavelmente com raiva. Mas se, no instante seguinte, ela percebe um novo e interessante chaveiro em nossas mãos e começa a brincar com ele, teremos então uma criança novamente tranquila e envolvida. Essa aparente instabilidade recebe o nome adequado de estabilidade emocional. A criança é orientada pela vida. Queria o bombom. Esse não veio. Ficou chateada, mas não tem jeito. Chaveiro interessante? Dane-se o bombom! Ela é consistente com a vida. Não está nem um pouco preocupada em se aprisionar a alguma coerência.

Meu filho - acho que com dois anos - tinha há poucos dias parado de chupar o seu bico durante o dia, quando me pediu ele de volta.

- Papai, to com uma saudade do meu bico...

- É meu filho? Mas você já tá tão grandinho e nós já explicamos que o bico faz os dentes ficarem doentes...

- É... Mas to com uma saudade... Deixa só eu matar a saudade. Só um pouquinho... Menor que um cocô de cupim (devia ser a menor coisa que ele conhecia).

- Só um pouquinho mesmo?

- É!

- Então tá. Tá aqui o bico.

 Chup, chup, chup........ Alguns minutos depois...

- João, já passou o tempinho que combinamos. Me devolve o bico, agora que você já matou a saudade?

 - Papai, mudei de ideia.

Ri demais! Maravilhosamente consistente e leal a vida, esse meu filho!

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

39. E Riobaldo vira o novo chefe do bando

 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 39)


Depois da encruzilhada Riobaldo está diferente e impõe respeito. Ele resolve, passando por cima da autoridade de Zé Bebelo, mandar alguém comprar remédios para os doentes do bando. E fica enjoado com a inatividade do grupo.

“Eu tinha enjôo de toda pasmacez.”

E começa a sugerir planos a Zé Bebelo, que se infiltre um colega no bando rival, para espionar ou até matar o Hermógenes. E ficar irritado se qualquer um conteste suas ideias.

Diadorim estranha os novos modos de Riobaldo, que repele qualquer um que pareça contestar suas ideias.

E agora, quando Diadorim ameaça fraquejar no dever da vingança, perguntando:

– “Nós dois, Riobaldo, a gente, você e eu... Por que é que separação é dever tão forte?...”

Riobaldo relembra a ele o seu mandado de ódio ao dizer:

– “Aquele, hora destas, deve de andar lá por entre oUrucuia e o Pardo... O Hermógenes...”

A provocação surte efeito e Diadorim acinzenta a expressão e retoma o ódio. Riobaldo fica feliz.

Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.

Como já dissemos em postagem anterior, Diadorim não era corajoso. Era valente. Pois faltava a ele o medo que dá a prudência necessária para que a coragem se manifeste.

E Riobaldo começa a declarar a todos os erros que eles haviam cometido, sob a liderança de Zé Bebelo. Que enquanto esperavam a doença passar já deviam ter mandado gente providenciar munição. Zé Bebelo reconhece o erro e o justifica pelo fato deles terem perdido a rota.

Riobaldo ganho um cavalo de Seu Habão, um maravilhoso animal. E manda – quando vê já tinha mandado – um colega cuidar do animal.

No dia seguinte chegam João Goanhá, com mais uns dez cabras que já tinham sido do bando.

E Riobaldo do nada pergunta a todos:

- “Ah, agora quem aqui é que é o Chefe?”

Só perguntei. Sei por quê? Só por saber, e quem-sabe por excessos daquela minha mania derradeira, de me comparecer com as doidivãs bestagens, parlapatal. De forma nenhuma eu não queria afrontar ninguém. Até com preguiça eu estava. A verdade, porém, que um tinha de ser o chefe. Zé Bebelo ou João Goanhá.

Um para o outro olharam.

- “Agora quem é que é o Chefe?”

Ninguém responde e ele pergunta mais uma vez. E ninguém fala nada. E pergunta de novo e ninguém responde de novo. Porque...

E eu – ah – eu era quem menos sabia – porque o Chefe já era eu. O Chefe era eu mesmo! Olharam para mim.

E pergunta de novo, ainda...

E com os companheiros todos já em volta dois parecem desgostar do que está acontecendo.

O Rasga-em-Baixo que, pelo visto, era um inimigo oculto de Riobaldo, resolve bulir em suas armas e Riobaldo o mata, tiro justo, na hora. E o irmão dele, José Félix treme frente a morte do irmão e já levou tiro também.

E Riobaldo pergunta ainda mais uma vez quem é o chefe.

Todos estão quietos.

Diadorim se aproxima de Riobaldo. Outros também vão formando ao seu lado.

João Goanhá sorri para Riobaldo e Zé Bebelo sacode os ombros.

Riobaldo ainda pergunta a Zé Bebelo, mais três vezes, quem é o chefe. No final ele fala que é Riobaldo mesmo.

E todos os companheiros veem cumprimentar o novo chefe do bando.

Zé Bebelo se despede, diz que não nasceu para ser chefiado. E batiza o novo chefe de todos.

- “Mas, você é o outro homem, você revira o sertão... Tu é terrível, que nem um urutu branco...”

O nome que ele me dava, era um nome, rebatismo desse nome, meu. Os todos ouviram, romperam em risos. Contanto que logo gritavam, entusiasmados: - “O Urutu-Branco! Ei, o Urutu-Branco!...”

Nasceu Urutu-branco, o chefe que não teme. Morreu Riobaldo, o menino temor. E o preço será pago mais tarde, com Riobaldo perdendo o seu amor maior.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Teste da banheira



Durante a visita a um hospital psiquiátrico, um dos visitantes perguntou ao diretor: 
- Qual é o critério pelo qual vocês decidem quem precisa ser hospitalizado aqui? 
O diretor respondeu: 
- Nós enchemos uma banheira com água e oferecemos ao doente uma colher, um copo e um balde e pedimos que a esvazie. De acordo com a forma que ele decida realizar a missão, nós decidimos se o hospitalizamos ou não.
- Ah! Entendi - disse o visitante. Uma pessoa normal usaria o balde, que é maior que o copo e a colher.
- Não! - respondeu o diretor - Uma pessoa normal tiraria a tampa do ralo. O que o senhor prefere? Quarto particular ou enfermaria?

"Às vezes a vida tem mais opções do que as oferecidas, basta saber enxergá-las". 

Informalidade calculada

Há uma tendência à informalidade calculada na relação entre as pessoas: elas não explicitam o implícito e não consideram o já explícito em regras anteriormente combinadas.

Sêneca

“Problemas há, liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até o fim ou simplesmente limitar-se a uma encenação para ilustrar o rol dos divertimentos”. 

Wittgenstein


“O que dificulta o conhecimento genuíno é com freqüência não a falta de inteligência, mas a presença do orgulho.”

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

“NÃO É COMIGO...



               
                Esta é uma estória sobre quatro pessoas,
                TODOMUNDO, ALGUÉM, QUALQUER UM E NINGUÉM
                Havia um importante trabalho a ser feito, e
                TODOMUNDO tinha certeza que ALGUÉM faria.
                QUALQUER UM podia tê-lo feito
                mas NINGUÉM  o fez.
                ALGUÉM zangou-se porque era um
                trabalho de TODOMUNDO.
                TODOMUNDO pensou que QUALQUER UM
                poderia fazê-lo, mas NINGUÉM imaginou
                que TODOMUNDO deixasse de faze-lo.
                Ao final TODOMUNDO culpou ALGUÉM
                quando NINGUÉM fez o que QUALQUER UM
                poderia ter feito.”

38. E Riobaldo resolve fazer o pacto mas o sem nome não aparece




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 38)

Depois de fugir do cerco na fazenda dos Tucanos, se perder com o bando, passar pela vila tomada pela peste e ficar mais de um mês esperando que o bando se recupere de várias doenças, tudo isso sob a liderança errática de Zé Bebelo, Riobaldo resolve fazer o pacto.

Ele sai sozinho à noite, cavalga até uma encruzilhada, nas chamadas Veredas Mortas, e começa a esperar o Maligno.

Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue derramável. Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo do espírito da gente? Como podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali, querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos esbarrarem num ror de nada.

E a espera começa a se prolongar. Mas ele não se cansa.

Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata. E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do escuro, tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O chirilil dos bichos. Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.

E não conheci arriação, nem cansaço.

E não podia fraquejar ou se prender a pertencencias antigas.

E por isso eu não tinha licença de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!

E a noite seguia. E o demo não vinha. E Riobaldo começa a apelar.

Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às nãovezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:

– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei, desengolindo.

Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só – que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão.

Riobaldo insiste.

– “Lúcifer! Satanás!...”

Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”

Mas ele não aparece. E Riobaldo pensa.

E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.

Riobaldo ainda espera pelo fim da noite, que demora a passar. E, apesar do sem nome não ter aparecido, Riobaldo acredita que foi escutado e volta ao bando, transformado. Agora ele tem certezas, demais. Agora ele vai ser o chefe. Não é mais Riobaldo, nem tatarana, seu apelido. Agora ele é Urutu Branco.

Na sociologia poderíamos dizer que esse fenômeno se chama profecia auto-realizável. Na psicologia temos vários nomes, de certa forma semelhantes: viés de confirmação, dissonância cognitiva, auto-sugestão.

Digamos que todos falam da tendência que temos de, ao acreditarmos em algo, acabarmos por provocar ou incentivar seu acontecimento. Imagine alguém que acha que não consegue aprender matemática. Essa pessoa nunca estudará matemática como estuda outras matérias, com o mesmo fôlego e disposição. Na certeza de que não consegue aprender, ao menor obstáculo, abandonará o intento. E depois da prova dirá: “Ta vendo? Olha essa nota baixa! Eu não dou mesmo pra matemática”. E confirmará a certeza subjetiva, realizará a profecia auto-realizável. E não compreenderá que, na verdade, ela poderia sim aprender qualquer matéria, tendo um bom professor, bom material de estudo e disposição de realmente tentar.

Ou imagine alguém que não acredita que o(a) parceiro(a) o(a) ama. Nada que se faça para esse decrente no amor será suficiente para que ele se convença de que é amado. E qualquer sinal insignificante será suficiente para ele julgar que não é amado. E ao fim de provavelmente muitos anos de sofrimento o(a) parceiro(a) desistirá, exausto de tentar, e será obrigado a ouvir: “Tá vendo! Eu sabia que você não me amava!” 

A vida é farta em falsos problemas que, apesar de falsos, geram consequências verdadeiras.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

37. E Riobaldo fica tentado a fazer o pacto com o que não existe



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 37)


Após fugirem do cerco na fazenda dos Tucanos o bando, ainda guiado por Zé Bebelo, consegue novos cavalos e saí em busca dos arreios. Mas se perde. Entra num caminho com avisos de proibido e encontram uns 15 homens, em farrapos, mas armados com foices, enxadas e garruchas antigas, que não querem deixar que sigam. Riobaldo desconfia que sejam doidos.

Quando os quase loucos percebem que o bando que chega é enorme, estremecem. E desculpas pedem, pensavam que fossem de uma cidadezinha vizinha possuída pela peste.

Riobaldo até tinha mudado de opinião, novamente, sobre Zé Bebelo. Quando o conheceu o tinha admirado, por sua coragem, presteza de pensar e inteligência. Quando estavam cercados na fazenda desconfia dele, de que possa trair a todos. Depois da fuga volta a admirá-lo. Mas agora o percebe errático, inseguro e político demais com os poderosos.

Riobaldo começa a achar que Zé Bebelo é falho demais para se manter como chefe. Ele fez o bando se perder, em seguida passou por dentro de uma cidade contaminada pela peste, depois perde muito tempo numa fazendinha isolada e, com seu pessoal doente, não manda ninguém buscar remédios. E Riobaldo também começa a perceber que Zé Bebelo, sempre tão valente, sente medo de se adoentar.

Riobaldo vê que os jagunços são amigos dos amigos, mas dispostos à maldade com a gente comum dos vilarejos. E se assusta com isso.

Lacrau, um companheiro de bando, conta a Riobaldo que Hermógenes era pactário.

E, veja, por que sinais se conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? – “Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz com alma?...” O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. – “Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão...” Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos.

(...)Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas.

E Riobaldo volta atrás na decisão de abandonar a jagunçagem.

Mas Diadorim era quem estava certo: o acontecimento que se carecia era de terminar com um. Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.

Aqui estamos em um ponto importante do livro. Riobaldo vai perdendo a confiança na liderança de Zé Bebelo. E volta a se sentir na obrigação da vingança. Descobre a crença que Hermógenes tenha feito o pacto com o demo. E se sente, ele mesmo, tentado a fazer o mesmo.

Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. – “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” – era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto!

Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah – tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.

E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi comigo: – É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por mim – só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais – é peta! – nonada. Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei.

E Riobaldo desiste, ou melhor, adia o pacto.



segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

poesia anonima

Aviso aos navegantes.

Entre um porto e outro,
o alto-mar.

36. E quando Diadorim fala de amor, Riobaldo fala da dificuldade de lembrar




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 36)

Diadorim insiste que Riobaldo não abandone o cangaço.


– ele botou-se adiante. – “Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a guerra varia de figura...”

Riobaldo Resiste. Nunca considerou que tivesse serventia para a chefia.

“Arredei: – “Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me toca...”

Da maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável diguice, queria abrandar minha opinião. Então eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu retraimento, de nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros – eu era o contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão! Me desinduzi. Talento meu era só o aviável de uma boa pontaria ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal me ouvia, achavam que eu era zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu não era capaz de falar a ponto. A conversa dos assuntos para mim mais importantes amolava o juizo dos outros, caceteava. Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma.”

E Diadorim insiste.

“Diadorim disse: – “Ei, retenteia! Coragem faz coragem...”

Demais eu disse: – “Sou Capitão-General?!...”

Antes tantas astúcias, em empalhar que eu não fosse embora, que eu ficasse preso naquele urjo de guerra, sem cabo nem ponta, sem costas nem frente, e que maçava. Recachei. A mão dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi afracar. E em duro repostei, com outra ombrada:

– “Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no mundo...”

E Diadorim muda de tom, mas Riobaldo acha que ele tá de zombaria, ao dizer que ele vai procurar por Otacília. Ou por outras. Mas a conversa é longa e no percorrer Riobaldo vai se envolvendo com as palavras de Diadorim e parece não mais ver ironias. No fim, parece nem achar que se trata de ciúmes de Diadorim. Riobaldo não está irritado, mas com dó.

– “Então, que quer mesmo ir, vai. Riobaldo, eu sei que você vai para onde: relembrado de rever a moça clara da cara larga, filha do dono daquela grande fazenda, nos gerais da Serra, na Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, como se combinam...” Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em Otacília. Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou: – “Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de presente de noivado...” Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara já revoava. – “... Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da feiticeira... Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo passante...” Não era na Rama-de-Ouro – era na Aroeirinha. Mas, por que era que ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável lembrança? Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido. Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... E tudo neste mundo podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio. Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava por destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazere e sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá – a sem-mesquinhice, para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que, de que gostava de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana Duzuza. O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo. – “... Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...” Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi. Até que vieram uns companheiros, com João Concliz, Sidurino e João Vaqueiro, que ajuntaram lenhas e armaram um fogo bem debaixo do paratudo. Ao relançar das labaredas, e o refreixo das cores dando lá acima nos galhos e folhas, essas trocavam tantos brilhos e rebrilhos, de dourado, vermelhos e alaranjado às brasas, essas esplendências, com mais realce que todas as pedras de Araçuaí, do Jequitinhonha e da Diamantina. Era dia-de-anos daquela árvore? Ao quando bem anoiteceu, foi assim. A gente só sabe bem aquilo que não entende.

E Riobaldo fala do bloqueio das memórias. Diadorim era o proibido, o interditado, aquilo no qual ele não poderia nem pensar nem lembrar.

O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não posso. Coisas que se deitaram, esqueci fora do rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum. Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu gostava demais dele.

Riobaldo não podia lembrar-se de Diadorim, seja por viver no mundo da jagunçagem, seja por saber que tem responsabilidade pessoal em ter perdido Diadorim.

Quando presos em preconceitos e estereótipos não podemos ver além de todos os pré-juízos que nos cercam.

Mas Riobaldo também não pode lembrar-se de Diadorim por saber que, como ele mesmo disse, esteve perto do que era dele, e não sabia, não sabia, não sabia. E que, justamente ao negar si mesmo, em seus medos e inquietações, negou juntamente sua sensibilidade e percepção. E acabou fechado, duro, valente, provocando a morte de Diadorim.

E resta então a saudade e seus vazios.