sábado, 29 de junho de 2013

Mário Quintana

Essas duas tresloucadas, a Saudade e a Esperança, vivem na casa do Presente, quando deviam estar - como seria lógico – uma na casa do  Passado e a outra na casa do Futuro.

- Mas e o Presente seu moço?

- Ah! esse nunca está em casa.



domingo, 23 de junho de 2013

Uma leitura do quadro “A calúnia” de Irma Renault




Nello de Moura Rangel Neto








O quadro “A alegoria da calúnia” de Irmã Renault, uma reconstrução do quadro perdido do pintor grego Apeles, produz normalmente forte impacto em quem o olha pela primeira vez. De grandes dimensões e em cores intensas e saturadas[i], é pouco provável que passe desapercebido ou não cause estranhamento.

Contudo, quando começamos a decodificá-lo iniciamos um processo de aproximação que rompe as barreiras iniciais que porventura ocorreram. É fascinante entender os significados entrelaçados e talvez ainda mais fascinante poder pensar sobre temas tão negados e desconsiderados pela maioria de nós.

Fundamento a análise a seguir, especificamente no que diz respeito às cores, nos trabalhos realizados sobre o teste “As pirâmides coloridas de Pfister”, e nos pressupostos da disciplina “Teoria da Cor”, por mim ministrada ao longo de anos.

O teste das pirâmides coloridas de Max Pfister é uma técnica projetiva, onde a pessoa testada escolhe entre vários tons de diferentes cores e monta algumas pirâmides com estes tons. Esse exame psicológico permite uma avaliação de personalidade da pessoa testada, com base nas suas escolhas cromáticas e no modo como ela estrutura as formas das referidas pirâmides.

Teoria da cor é uma disciplina que estuda a cor e seus fundamentos psicológicos, físicos, fisiológicos e culturais. Ministrei essa disciplina em cursos de arte, publicidade e restauração de obras de arte.

Em um primeiro olhar a visão geral da obra de Irma Renault indica um mosaico de cores, a grande maioria delas muito intensas, tal qual um tapete muito colorido, mas paradoxalmente com poucos contrastes, uma vez que quase todos os tons são bem saturados, puros. Podemos dizer que as únicas exceções a esse padrão de saturação intensa são o tratamento dado às figuras da inocência e da hipocrisia, amarronzadas e escuras.

Esse tapete intenso e que grita quase todo no mesmo tom sugere o que se chama de labilidade afetiva, como se o quadro o tempo todo oscilasse entre as mais variadas emoções. Apesar de só possuir uma figura em movimento explícito – a calunia corre para a esquerda – o quadro todo como que se movimenta, ou ao menos leva os nossos olhos a se movimentarem entre as figuras, maneando entre os vários tons, intensamente e sem descanso.

Tentando classificar o quadro dentro dos critérios da história da arte podemos dizer que se trata de uma obra expressionista, e que oscila entre o Fauve e o Naif, com predominância deste último.

Expressionista porque privilegia a força da expressão à fidedignidade da representação. O expressionismo não procura retratar o que se vê objetivamente, mas sim as emoções e sentimentos subjetivos que a realidade suscita no artista. Os expressionistas tendem a se afastar de um superficialismo mais preocupado com a habilidade técnica, característico de uma arte demasiado refinada, e a se aproximar dos modos diretos e francos, em suas formas e cores.

E entre o Fauve e o Naif porque guarda características dos dois grupos.

Os Fauvistas utilizam cores vibrantes e tratam de maneira livre a forma de representação do mundo. Buscam ainda a redução da linguagem da pintura a seus meios de expressão mais essenciais, dando especial destaque a cor, a forma e a pincelada. O termo Fauve significa fera, e foi usado para se referir a intensidade que caracterizava os quadros desses pintores.

Já os Naifes se referem a uma pintura de natureza espontânea, a maior parte das vezes autodidata e desvinculada de escolas tradicionais da arte. Suas composições geralmente são básicas, detalhadas e de fácil compreensão. Esta forma de pintura se caracteriza pela simplicidade e constantemente é associada à ingenuidade. Etimologicamente, deriva do francês Naif, que tem o significado de originário, nativo; natural, espontâneo, sem artifício. Este por sua vez vem do latim natívus, que se refere ao que é natural, no sentido de formado pela natureza, não artificial, primitivo.

A influencia Naif é muito importante para a arte moderna. Quer seja pela tentativa de recuperação do valor mágico, sagrado e ritualístico que a arte possuía para os povos ditos primitivos, quer seja pelo anseio romântico de fugir de uma civilização corrompida e cruel, a presença Naif se faz sentir em quase toda a arte moderna e contemporânea. A influencia da arte Naif é considerada um tipo de retorno ao infantil, ao espontâneo e ao lhano, retorno este que marca toda a arte e o gosto a partir do inicio do século XX.

Logo após o início desse século, particularmente após a primeira exposição dos Fauves, em 1905, inicia-se segundo alguns autores uma verdadeira revolução no gosto, por influencia de uma estética Naif. Os pintores começam então a se interessar por redescobrir a beleza das obras do início da idade média, a estudar as obras dos indígenas, a descobrir a obra de Henri Rousseau, e a valorizar assim a estética que traz em seu núcleo a simplicidade, o vigor e a poesia.

Esse enfoque reminiscente e de certa forma pueril é encontrado claramente em muitos artistas posteriores, particularmente em Chagall. Trata-se de um gosto pelo que é direto e genuíno, sem afetações ou artifícios, gosto esse que pode facilmente cair em contradição ao se esforçar para se tornar deliberadamente ingênuo ou primitivo.

Mas como sugerir um componente Naif neste quadro de Irmã Renault, um quadro tão pesado e que trata de temas tão próximos da violência e da atrocidade? Parece contraditório, mas observando bem a pintura veremos que é adequado. Como indícios Naifes vemos as cores intensas e saturadas, as formas definidas com clareza, a perspectiva simples e despreocupada, a abordagem pouco realista dos personagens. Mas, sobretudo um clima com alguma ingenuidade, uma simplicidade que parece ser a única forma assimilável de se tratar de temas tão pesados.

No passado foram várias as representações da calúnia que tentavam reproduzir ou recriar a pintura original que se perdeu, de Apeles. Em todas havia uma estilização formal da obra, de acordo com seu tempo, que acabava por atenuar o peso da temática. E de certa maneira também diluía a força e importância do assunto.

Há na abordagem Naif de Irma uma forma alternativa de adentrar o tema de modo espontâneo, cru e forte, desprovido das formalidades atenuantes de outras obras. O quadro grita aos nossos olhos, mas não ensurdece. Um sutil equilíbrio permite que vejamos todo seu universo sem ficarmos ofuscados pelo terror.

Talvez o conceito mais apropriado para compreender esse fenômeno, que permite entender a arte naif como densa e não como infantil e diluída, seja a palavra lhaneza, que é a qualidade do que é lhano e afável. Indica candura, singeleza. Vem do espanhol, e junta em si os fundamentos da franqueza e da simplicidade. Lhano é aquele que é movido pela franqueza, que é franco, sincero e verdadeiro. E o é de maneira simples, natural, singela, amável e despretensiosa.

Os dois conceitos – naif e lhano - se opõem tanto ao afetado e ao fingido e rebuscado, como também ao tosco, ao presunçoso, ao ardiloso e ao soberbo.

Lhaneza seria a ponte entre a simplicidade e a verdade, entre a sinceridade e a delicadeza. Aquilo que é lhano consegue tudo dizer, com força e franqueza, sem afetação, fingimento, ardil, presunção ou rebuscamento.

Penso que o conceito de lhaneza é essencial para se compreender o naif. Retoma esse conceito a densidade que caracteriza esse movimento, impedindo que ele seja dissolvido como se fosse algo infantilóide ou simplório. E explica como Irmã Renault pode neste quadro dizer tudo sem entorpecer ou ofuscar quem o vê.

Olhando para o quadro nos chama a atenção dois seres que tem a cor laranja em sua composição. O primeiro deles é a calúnia.





Tema central do quadro a calúnia é quase que totalmente de um laranja intenso, com detalhes em vermelho. É ainda a única figura do quadro que corre e tem um olhar que mira algo ao lado da tela, como uma meta ou objetivo, mas pelo seu tom um objetivo de violência e de domínio. Só a calunia tem um sorriso claramente sarcástico. Com uma mão ela finca o pé da inocência e com a outra ela queima o pé da inveja. A Tocha que pretenderia iluminar a realidade com a pretensa verdade que a calunia expõe está voltada para trás, não ilumina o adiante.

Sua figura se destaca no centro do quadro, de modo único quando comparada às demais. E divide o tratamento dado ao fundo do quadro em duas metades, uma adiante de si, na qual predominam os tons frios, azuis, violetas e verdes e outra atrás, nessa predominando os tons quentes, particularmente o amarelo e o laranja.





A inocência tem o rosto no mesmo tom de laranja que predomina na calúnia. Também é a única que tem dentes igualmente agressivos. Os dentes da má fé aparecem por que ela sorri. Os dentes da credulidade aparecem porque ela tem a boca frouxa e hipotônica dos imbecis. Já os dentes da calunia são os únicos pontiagudos, perfuradores. Os dentes da inocência, apesar de não pontiagudos como os da calunia, são os únicos que mordem, no caso, mordem a hipocrisia.

A inocência é a única que rivaliza em destaque com a calunia nesta obra. Se a cor e a posição central desta chamam nosso olhar com irresistível força, o tratamento “peludo” e de tonalidade escura daquela possuem semelhante capacidade de atração. O tratamento e a textura dada a grande parte de seu contorno parece sugerir uma pelagem marrom que envolve seu corpo, como que querendo isola-lo de tudo a sua volta, numa atitude de fechamento e impermeabilização, como se possuísse uma fraqueza interna que devesse ser defendia a todo custo.

A inocência é a única com chifres, um símbolo do poder e do demoníaco. É também a única com uma coroa. A coroa e o corno se elevam acima da cabeça e indicam poder, separação do que seja próximo do humano e superioridade. E, de fato, fazer-se de inocente é uma forma evidente de poder e de manipulação. A figura da inocência é ainda a única com uma língua aguda e viperina, em forma de foice, capaz de ferir.

A inocência está localizada no canto mais escuro do quadro, como a sugerir que tentar considerar possível sua participação no círculo diabólico da calúnia é assunto obscuro e nebuloso. A maior parte das pessoas não compreende que a inocência possa participar da calúnia. Só a vêm como sinal de pureza ou da condição de vítima. A inocência tem o pé espetado pela lança da calúnia, o que parece indicar que o objetivo da calúnia é atingir a inocência. Outra leitura, porém, é possível. A lança da calúnia tem claramente a forma de uma seta. A artista poderia desta forma sugerir que a inocência é uma figura das mais importantes da calúnia, daquelas que mais contribuem para manter o círculo diabólico da calunia a girar. A força da inocência encontra seu principal pilar no fato de ser dissimulada, ambígua, disfarçando-se em sua aparência de inocente. Não por acaso seus vizinhos mais próximos são igualmente escorregadios e imprecisos: o sarcasmo, a hipocrisia e a má-fé. Este quadrante que começa com a má fé, passa pela hipocrisia e pela inocência e termina com o sarcasmo é o quadrante da obscuridade e do falseamento.

Irma Renault pintou este quadro 18 anos após pintar sua primeira versão da calúnia de Apeles. Ao longo dos anos, à medida em que ia compreendendo as nuanças fundamentais de cada uma das 14 figuras participantes, realizava novas pinturas sobre o mesmo tema. É relevante observar que a última figura a ser melhor compreendida pela artista, justamente por seu caráter ambíguo, foi a figura da inocência. Somente nesta versão final a artista muda sua aparência de vítima e a revela como participante ativa do círculo diabólico da calúnia. A revelação das verdadeiras características da inocência na dinâmica da calunia é uma das principais inovações de Irma Renault quando comparamos seu quadro com tantos outros conhecidos, de outros artistas, sobre o mesmo tema.

Nós não temos o direito de sermos inocentes. Não temos o direito de negar a busca pelo poder que nos impregna, que impregna aos outros e que impregna as relações. Se negarmos a parte que nos cabe na luta pelo poder acabaremos decepcionados quando confrontados com essa face da vida, seja quando esta aparece em pessoas do nosso afeto que considerávamos desprovidas do mal, seja quando aparece em nós mesmos. E atolados dicotomicamente na decepção, acreditaremos que o bem e o amor não existem, que quem quer que se julgue bom na verdade é bobo, e que só nos resta sermos mais espertos que os espertos.

Esperando a recompensa por nossa bondade – esse seria nosso poder tão negado? – acabamos por negar os valores que tanto professamos. Ao negar o poder presente em cada qual acabamos por negar a bondade, não podemos mais sermos bons, pois a nossa pretensa bondade é nossa fonte própria de poder.

A única perspectiva nesse contexto, de amar e ser amado, de ser verdadeiramente bom, é começar por identificar cada lasca de poder que jaz dentro de nós, desde as mais inconfessáveis até as que julgamos plenamente justificáveis. Assim o poder pode adquirir seu real tamanho. Nem inexistente nem monstruoso.

Porque a inocência foi a ultima figura a ser devidamente elaborada no quadro da calunia? Porque é aqui que o poder se esconde. E se mantém.





A hipocrisia faz companhia à inocência, sendo as duas as únicas figuras que têm a cor marrom escuro, que destoa de todo o resto do quadro. Esse é o tom da obstinação, do conservadorismo e do fanatismo. A hipocrisia é a figura mais escura de toda a alegoria. Seu tom marrom envolve seu corpo por inteiro, o que a difere da inocência, que tem marrom unicamente em seu contorno. É a única de cabeça pra baixo, em posição morcegal. A hipocrisia está espremida entre a má fé e a inocência. Apóia um pé no ouvido da má fé e uma mão na língua viperina da inocência. A hipocrisia obstrui o único buraco de azul no céu que poderia iluminar este lado sombrio da obra. Somente ela e a verdade por ouvir dizer apresentam a boca em arco invertido, que representa tristeza. Há uma diferença estranha entre seus olhos, um deles arredondado, o outro triangular. Citaremos abaixo outros olhares divididos, um presente na figura do sarcasmo, e outro na máscara da má fé, e tentaremos associar esses olhares.





Quase sumindo, meio que querendo sair do quadro, está o sarcasmo, com sua forma espiralada, insinuando em sua metade inferior uma víbora. Seu corpo é dos mais inumanos quando comparado aos corpos das outras figuras. Seu tom quase se confunde com o fundo do quadro, mas mesmo assim o seu azul, de tom mediano como o azul da figura da verdade por ouvir dizer, é essencial na composição da obra. As duas figuras equilibram os extremos do quadro. Seu tom de azul é o tom do convencionalismo, da formalidade e da falta de autenticidade. O sarcasmo, que em si se caracteriza por um riso amargo, cáustico, que com a boca dilacera, neste quadro tem um sorriso quase maroto. Sua única mão, de seis dedos, parece querer alcançar algo acima. Mas seu olhar não acompanha seu gesto, pois um olho olha pra cima e o outro olha para baixo, num estranho estrabismo. É, pois, de uma ambigüidade múltipla, dividido entre gente e serpente, dividido entre gesto e olhar, dividido no próprio olhar, entre olhar acima e olhar abaixo, e por fim sutilmente dividido em cores, com o azul por fora e o verde por dentro.






Sendo tocada pela mão cinza da inocência está a má fé. Apresenta um corpo amarelo e tenta ocultar seu rabo peludo de escorpião na parte obscura do quadro. Seus pés têm a forma de garras, tal qual uma ave de rapina. Segura em uma mão um buquê de cor laranja-vermelho, meio flores, meio corações sanguinolentos. Na outra mão uma máscara, de cor azul, tal qual a cor da verdade por ouvir dizer.

A má fé sorri de olhos fechados, mas a máscara que segura em uma mão está de olhos abertos. É como se a má fé dissesse que ela mesma não vê o que faz? Ou ela fecha os olhos, propositadamente, e só olha através de sua máscara? O olhar dessa máscara é o terceiro olhar dividido do quadro e, curiosamente, une o olhar da hipocrisia (é redondo e triangular) com o olhar do sarcasmo (olha ao mesmo tempo para cima e para baixo). É a figura da aparência de adequação, mostra flores e máscaras, e tem seu corpo na cor amarela, que se caracteriza pela ação orientada para a aceitação dos outros, para o convencional, mesma cor do interior da inocência.

Em várias partes da figura da má fé vemos pinceladas cinzas. Elas circulam seu rosto, estão na sombra de seus olhos e no contorno de seus seios. Uma mancha cinza escuro preenche o espaço entre seu braço direito e o abdômen, e como que amputa uma parte de sua barriga. Outra mancha, de cinza médio, preenche o espaço abaixo de si.

É sugestivo encontrar a inocência cercada por três olhares ambíguos, estranhos, e divididos, presentes nas figuras do sarcasmo, da hipocrisia e da má fé. Eles indicariam os vários artifícios que a inocência usa para dissimular-se? Ou talvez a aparência escorregadia e ardilosa que a inocência usar para manipular? O próprio olhar da inocência é único no quadro. Assemelha-se ao da credulidade, por também olhar para cima. Mas diferencia-se dessa por trata-se de um único olho, e nisso assemelha-se ao olhar de peixe morto, ao mesmo tempo enfermo e desvitalizado, ao mesmo tempo sedutor e manipulador.





A verdade por ouvir dizer, convencionalmente azul, parece observar algo, justamente no espaço de onde a calunia deveria ter saído. A verdade por ouvir dizer só enxerga os rastros da calunia, somente a área que a tocha da calunia ilumina. Assim como a hipocrisia, sua boca invertida expressa tristeza.

Mas mesmo vendo somente os rastros da calunia como poderia a verdade por ouvir dizer ver de fato alguma coisa? A sua tocha não ilumina adiante, não ilumina onde ela deveria ver. Sua tocha ilumina pra trás.






Ocultando-se atrás da verdade por ouvir dizer está a maledicência, a figura mais escondida da pintura. O fato de tentar ocultar-se atrás de outra figura parece sugerir que a maledicência só pode funcionar se não for explicita. Não se pode falar mal do outro abertamente, se se pretende alcançar algum efeito. E o ideal é se esconder atrás de uma aparência de verdade.

Allport definiu uma graduação dos níveis de preconceito. O primeiro nível é falar mal. Em seguida vem, em ordem crescente de preconceito o evitar contato, a discriminação, o ataque físico e por fim o extermínio.

Falar mal é visto pela maioria das pessoas como algo sem importância. As piadas sobre negros, louras, portugueses, e etc, estão aí para demonstrar a banalidade do falar mal. Contudo, justamente em sua aparente desimportância, se revela o perigo. Ao desconsiderar a violência presente no falar mal perde-se a oportunidade de interromper o processo discriminativo de exclusão do preconceito, que culmina, como demonstrado na escala, na eliminação física. A artista foi muito feliz ao colocar a figura da maledicência tão escondida no quadro. Sua força está em não se mostrar em todo seu ódio, está em sua capacidade de despiste, em sua banalidade.

O corpo violeta claro da maledicência rasteja pelo chão. Esverdeado é seu rosto, de um verde semelhante ao verde da inveja. Será a maledicência sempre movida pelo invejar? Laranja-vermelho intenso é sua língua, a lamber o chão. Mas não aparenta estar insatisfeita por isso, nem com o fato de ser a figura mais a se arrastar no chão do quadro, uma vez que sorri. Parece verdadeiramente interessada no chão que lambe. Há aqui semelhanças entre a maledicência e Anteu, gigante da mitologia greco-latina. Um dos adversários de Hércules, Anteu tira forças da terra, e fica mais forte a cada vez que cai, arremessado ao solo.

A maledicência é a única figura do quadro com o olhar negro.

A língua que se destaca na figura da maledicência somente encontra o mesmo destaque na figura da inocência. É significativa esta similaridade. A maledicência realiza-se através de sua língua, ao falar mal. A inocência participa do círculo da calúnia de várias formas. Em uma delas seu principal ardil é fazer-se de inocente, fingindo desconhecer a calunia que acontece, se omitindo de revelá-la e assim interromper sua propagação. Uma outra forma, na qual o uso da língua pela inocência é evidente, acontece quando o inocente passa adiante a calunia, com a justificativa de que não foi ele quem a disse pela primeira vez, pois ele está somente repetindo algo que ouviu. Pretende dessa forma isentar-se de qualquer responsabilidade sobre a calunia, que ajuda a propagar quando a passa adiante com sua língua viperina.






O artifício paira no ar, único ser alado. O artifício, enquanto olha para a calúnia, tenta colocar a mão sobre a cabeça da verdade por ouvir dizer. Olha de esguelha, levantando uma sobrancelha, como que a tentar ver se alguém percebe o que pretende fazer. É meio rosa, cor adequada para aparentar inocência, mas seu rosto trás ambíguos e dissimulados tons de cinza (ou seriam tons de cinza azulado?). Em suas asas cinco olhos azuis nos olham, a tentar metamorfosear essas asas em um rabo de pavão.

Assim, neste canto da obra a verdade por ouvir dizer, que ilumina só para trás, olha adiante o espaço que só recebe a luz da calúnia. Por trás da verdade por ouvir dizer a maledicência, sorridente, usa de sua língua destrutiva. Acima da verdade por ouvir dizer, o artifício põe a mão sobre sua cabeça.

“Escuta, meu filho, disse o demônio colocando sua mão sobre minha cabeça...”
Edgar Allan Poe






De um azul mais clarinho, mais infantil, está a culpa, de joelhos, de olhos fechados como a má fé, carregando uma pedra cinza escura, mesma cor das mãos da inocência. Cheia de dedos, seis em cada mão, a pedra não parece fustiga-la, uma vez que sua expressão parece tranqüila. A culpa, de olhos fechados, não vê e não parece se incomodar com isso.





Quase que Inteiramente cinza, de um cinza ao mesmo tempo escuro e azulado é o remorso. Seu rosto tem traços pouco definidos, meio transparentes, ambíguos. Mas mesmo assim percebe-se que não está triste. Sua atitude corporal é de afetação e sedução. Apóia a cabeça na sua mão esquerda, parecendo até sorrir para quem olha o quadro. Sua cor é muito apropriada, cor escorregadia, nem sim nem não, nem preto, nem branco, indicativa de que não haveria um verdadeiro arrependimento.

Esta dupla do quadro, a culpa e o arrependimento, sentimentos tão pesados e tristes, parece estranhamente feliz. A artista parece sugerir que o arrependimento não é real, e que a culpa aqui não pesa.

Esse retrato inesperado da culpa, essa estranha leveza em um sentimento considerado habitualmente absolutamente pesado, é muito apropriado em face a uma analise mais aprofundada do sentimento culposo.

Ao vermos uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a criança em questão não saberá verdadeiramente no que suas atitudes estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original, muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.

A culpa não se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se afasta da compreensão de seu erro.

Mesmo porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro, peca-se contra Deus.

Se compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.

A culpa só presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer mais facilmente.







No canto oposto da pintura a desconfiança rosa olha de soslaio. Ela é a única figura do quadro com o braço mais flexionado, em atitude de defesa, como se se sentisse ameaçada, como se suspeitasse de alguma coisa. A desconfiança também é a única que verdadeiramente não tem pés. Somente uma parte de uma coxa se insinua. Algumas figuras da pintura têm seus pés ou pernas tampados por outra figura ou por alguma parte do próprio corpo. O sarcasmo não tem pés ou pernas pelo fato de ter corpo de cobra. Já na desconfiança a artista poderia ter pintado ao menos um pé no espaço entre o rosto e o braço da ignorância, mas não o fez. Parece indicar que carece à desconfiança base ou fundamento naquilo que desconfia.






A desconfiança se esconde atrás da ignorância. De um verde mais claro que o verde da inveja, a ignorância está com suas enormes orelhas de burro e em irônica posição semelhante à famosa estátua “o pensador”. Em posição de reflexão como se encontra, a ignorância parece indicar que é ignorante não por que não pensa, mas talvez porque não pergunta, uma vez que sua boca está somente insinuada e parece fechada. Outro sentido possível para sua pose de pensador é que a ignorância ignora que ignora. Ela acha que sabe. Neste contexto, a ignorância não sabe que não sabe, e assim nem vê sentido em perguntar algo.





A inveja também é verde, mas de um verde acinzentado e escuro. Cobras atacam seu coração marrom, como dito antes, tom do conservadorismo, do fanatismo e da obstinação. A inveja parece ter um chocalho (ou seria uma coroa?) na mão. Essencialmente dividida, a inveja vai para um lado e olha para o outro. E é a única com a boca arregalada, que poderia ser de pânico, mas o restante da expressão de seu rosto e de seu corpo não parece indicar isto. Resta então a essa boca arregalada ser uma boca famulenta, insaciável. No quadro somente a inocência e a inveja possuem “unhas-garras”.

Virada para a esquerda a inveja parece sugerir que vai adiante, mas a posição de suas pernas é ambígua. Pode indicar movimento para frente, recuo para trás, ou mesmo que está parada apoiada sobre seu pé direito. A sensação é de que na verdade a inveja está imobilizada, olhando para trás, numa espécie de saudade. Seus olhos são vermelhos, assim como os olhos da máscara da má fé e do sarcasmo.

O olhar tem particular importância no caso da inveja. Podemos ter inveja de coisas tangíveis, do dinheiro alheio, da beleza física ou da juventude de outras pessoas. Mas a inveja mais dura, mais visceral, é a inveja do brilho no olhar, a inveja da sensação que o outro pode produzir em nós de que ele é verdadeiramente feliz. Dinheiro ou beleza física podemos tentar conquistar. Mas como conseguir a graça e a felicidade quando nem mesmo acreditamos que elas existem? Como tomar do outro o brilho do seu olhar, a sua vitalidade? Se estivermos de fato vitalizados nem mesmo o olhar mais invejoso é capaz de tirar de nós a graça. A inveja acaba por ser uma forma de desesperança, uma crença de que estamos condenados à infelicidade e que a graça e a vitalidade são ilusões pueris.






A roxa credulidade olha para cima, em direção à inocência E ajuda a calunia, juntando sua mão à dela, a espetar o pé da inocência.

A credulidade tem grandes orelhas, tudo ouve e acredita. Tem a boca flácida e hipotônica dos tolos. A credulidade é a única que tem uma cor interna diferente da cor externa. Parece dividida, como a inveja. Mas, se a inveja está dividida entre duas direções, entre ir para um lado ou para o outro, a credulidade está dividida entre o que carrega dentro de si e o que mostra do lado de fora.

O quadro todo se movimenta e se interliga, seja pela estrutura de sua composição, seja pelo intenso jogo entre as cores, que remetem nosso olhar por todo o campo pictórico.






A figura central da calunia, tendo acima de si a má fé, a inveja e o artifício, se afasta da verdade por ouvir dizer. Com sua lança ela fere a inocência, apoiada pela credulidade, que em tudo acredita, pois é ladeada pela desconfiança e pela ignorância, que a impedem de perguntar e assim revelar a realidade.

Na versão pintada por Botticelli sobra a calúnia de Apeles, assim como também em outras versões antigas, há um rei/juiz a receber a denuncia da dupla calúnia/inveja. Essa é a figura a ser convencida da “verdade” das denuncias da calúnia. No quadro de Irma Renault a figura do juiz parece ser substituída pela credulidade. Isso é insinuado pela orientação da figura da calunia, que se dirige à figura da credulidade Nas obras antigas a credulidade é orientada pela ignorância e pela desconfiança a acreditar na calunia. No quadro de irma isso é só levemente insinuado pela posição próxima das três figuras.

A inocência se apóia em seus vizinhos contorcionistas, o sarcasmo e a hipocrisia, na tentativa de apresentar-se imaculada e pura. Tenta alcançar a má fé com a mão, pois deste modo sua fraude se completaria.

A inveja caminha sobre o artifício e olha para trás, em direção a uma dupla de expressão paradoxalmente feliz, o remorso e a culpa.

A verdade por ouvir dizer não ilumina para si, tudo que vê reflete a luz da calunia. Atrás da verdade por ouvir dizer uma feliz maledicência rasteja. Por cima o artifício bota a mão em sua cabeça.

A presença da cor cinza é fundamental na dinâmica do quadro. Só se percebe a presença de tons de cinza na metade superior desta obra.

No canto inferior esquerdo as figuras da suspeita, da ignorância e da credulidade formam um grupo bem definido. No lado oposto o mesmo acontece com o grupo formado pelo artifício, pela verdade por se ouvir dizer e pela maledicência. Ligando um grupo ao outro, numa dinâmica perfeita, encontramos a figura da calúnia.

Essa mesma dinâmica não é encontrada na parte superior do quadro, onde as figuras estão mais desconectadas entre si. A cor cinza é o elemento que não permite que essa desconexão comprometa a dinâmica o quadro como um todo.

O movimento do cinza se inicia nas mãos da figura da inocência. Esta toca a má fé que se acinzenta em várias partes de seu corpo, chegando a contaminar de cinza o fundo da obra.






No centro do quadro, entre as pernas da má fé, acima de um dos pés da inocência e acima da testa da calúnia está a única parte do quadro preenchida por uma cor chamada tecnicamente de cinza médio. Neste cinza que preenche essa parte do fundo da obra não há misturado nenhum tom de outra cor. Este cinza não é claro nem escuro, é neutro. É o único tom que só existe em um ponto do quadro e foi posto justamente no centro, assumindo função essencial na composição do quadro como um todo.

O cinza continua seu trajeto pela figura que surge ao lado da má fé, a inveja, em seu verde acinzentado. E adiante encontra o azul acinzentado do arrependimento que, por fim, acinzenta a pedra carregada pela culpa.

Assim encontramos na metade superior da obra o percurso insaturador, atenuador e igualizador do cinza, unindo dinamicamente as figuras desse quadrante e impedindo a sua fragmentação.

Esse quadrante superior unido pelo cinza é o trecho de mais difícil identificação por parte de quem vê o quadro. Suas figuras são as mais negadas sendo difícil para as pessoas encontrar em si qualquer semelhança com elas. Não por acaso o cinza é cor ligada a ambigüidades e indefinições, a renegações, a omissões e racionalizações justificadoras.

Comparando o quadro de Irma Renault com outra versão da Calúnia de Apelles, pintada por Botticelli, podemos perceber algumas diferenças importantes.





Chama logo nossa atenção o fato de que a versão de Botticelli é bem mais leve que a versão de Irma Renault. Predomina naquela tons insaturados e mais claros, ao passo de que nesta predominam tons saturados e gritantes. A isso se soma o fato de que na versão de Botticelli algumas das figuras são retratadas de forma leve e positiva. Essas figuras podem ser divididas em dois grupos: as que com a aparente leveza dissimulam suas funções violentas e manipulativas (essas seriam a ignorância, a calúnia, a insídia e a fraude) e as que realmente se apresentam como leves, como não atuantes na calunia e em sua dissimulação (que por sua vez seriam a inocência e verdade).

O primeiro grupo, das figuras que são retratadas de maneira mais leve mas que participam ativamente da calunia, indica uma sutiliza interessante nessa pintura. Para que a calunia possa realmente se realizar em sua plenitude ela tem que ser, ao menos parcialmente, dissimulada. Suas figuras não podem berrar suas intenções. Elas tem que aparentar confiabilidade e até serem belas, como algumas citadas acima. Neste sentido, o quadro de Botticelli é mais sutil do que o de Irma Renault.

O segundo grupo, composto pela inocência e pela verdade, é o grupo das figuras que não seriam ativas no fazer ocorrer a calúnia. A inocência seria a sua vítima sacrificial, e a verdade seria a vítima omitida, que não pode ser revelada. No quadro de Irma Renault as duas são radicalmente transformadas. A verdade se torna a verdade por ouvir dizer. E a inocência se torna um monstro diabólico. A pintora parece ter ficado muito impressionada quando percebeu que era possível violência por trás da inocência, e que desse modo a inocência não seria verdadeiramente inocente, mas só se faria passar por tal. Apesar de ser verdade que, por trás de uma aparente inocência, pode haver até mesmo o núcleo da violência, isso não nos permite supor que não exista mais a possibilidade de alguma inocência, ou seja, de existir alguém que não participe da calúnia. Também não faz sentido supor que toda verdade é somente verdade por ouvir dizer, é somente uma ilusória verdade. Existe aquele que não participa da calúnia e que neste sentido é inocente. Existe a possibilidade de se sair da calúnia e se aproximar da verdade.

Assim, nem tudo é calúnia, nem tudo é mal, nem tudo é feio e injusto. Irma Renault parece ter se assustado com o que percebeu e feito uma alegoria de um mundo onde não resta uma fresta de ar fresco, um resquício de bondade.

No interior se diz que, quando banhamos uma criança na bacia, ao lançarmos a água suja fora, pela janela, não podemos nos esquecer de tirar a criança antes. Nem tudo é calúnia, nem tudo é violência, nem tudo é desamor. Há de se ver o que de feio há em cada um de nós, mas sem com isso negar o que temos de verdadeiro e belo. Ou, dito de outra forma, queimemos as formas caducas de nossa existência, e preservemos o que é bom, belo e justo. Nem tudo deve ser jogado ao mar.

Por fim, tentamos nesse trabalho uma leitura de um quadro tão complexo e rico, que trata de temas tão humanos, mas tão negados por todos nós.

Justamente por isso neste texto a palavra estranhamento não foi usada à toa. Sua etimologia é muito precisa: remete ao estrangeiro, àquele que é de fora, que não pertence à família. Logo no início do artigo usei pela primeira vez essa palavra, ao me referir à atitude primeira de muitas pessoas quando diante do quadro. Considero que essa atitude revela a dificuldade que temos com aquilo que em nós consideramos como feio, errado ou mau, e que o quadro parece de alguma forma nos querer lembrar.

Certos quadros parecem ter essa propensão de causar estranhamento em quem os vê. Talvez, por isso mesmo, esses quadros tragam em si a possibilidade de modificar algo em nós, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para nós mesmos (e conseqüentemente para os outros à nossa volta), ou até permitir uma reconfiguração um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira ressimbolização do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos. O quadro “A Calúnia”, de Irma Renault, trás em si essa potencialidade e por isso merece ser considerado com cuidado.






[i] Toda cor é classificada segundo três parâmetros: matiz, valor e saturação.
Matiz é a cor individualizada, é o nome que recebe cada cor do círculo cromático: vermelho, amarelo, azul, etc.
Valor é o grau de luminosidade da cor. O violeta é mais escuro (ou seja, tem menor valor) que o amarelo, por exemplo.
Saturação é grau de pureza da cor. Toda cor se insatura ao ser misturada ao branco, ao preto ou ao cinza. No caso do branco e do preto a cor sofre também um acréscimo ou decréscimo, respectivamente, de sua luminosidade, ou seja, de seu valor.
No caso de se misturar uma cor ao cinza (no caso, um cinza médio, nem claro, nem escuro) a cor não modifica sua luminosidade, somente diminui a sua saturação, o seu grau de pureza ou intensidade. Se continuarmos a acrescentar cinza na mistura a cor perde a sua própria identidade original, até todos os diferentes matizes se igualarem no cinza. 

sábado, 22 de junho de 2013

Quem é essa garotinha?


Lindo e impressionante texto de Luciana Coelho, publicado na Folha.

A história de Danann Tyler, 10, que nasceu menino na Califórnia
LUCIANA COELHO

RESUMO Apesar de ter nascido com par de cromossomos XY, definidores genéticos do sexo masculino, Danann Tyler, 10, se expressa como menina desde os 2 anos. A história da criança, que se encaminha para o feminino, sob acompanhamento médico e psicológico, retrata um capítulo ainda movediço das questões de gênero.

"Cindy, como alguém pode olhar para esse rosto e achar que eu poderia ser menino?" Danann Tyler se olhava no espelho e mexia nos cabelos durante a sessão com sua terapeuta, Cindy Paxton, em Redlands, cidadezinha vizinha a San Bernardino, na Califórnia.
Especializada em crianças e adolescentes transgênero, Paxton atende Danann desde os seis anos. Hoje ela tem dez e é tratada em casa e na escola como a menina que diz ser. Nem sempre, porém, as coisas foram assim.
Danann nasceu menino, biológica e geneticamente. Isso significa que ela possui um cromossomo X e um Y, que define desde a fase embrionária os machos da espécie humana (as fêmeas são XX), e órgãos sexuais masculinos, interna e externamente. Mas, desde que começou a se expressar, aos dois anos, identifica-se como menina.
Quem a vê de legging e camiseta de paetês saltitando pela casa confortável onde mora, na região californiana de Orange County, falando sobre musicais da Broadway ou abraçando o interlocutor com um afeto espontâneo que meninos da mesma idade não costumam demonstrar, não escapa da pergunta feita por Danann diante do espelho. Como alguém pode olhar para aquele rosto e achar que possa ser de um menino?
Afinal, em poucas horas ao seu lado se constata que tudo, em Danann, é feminino, ou ligado àquilo que a sociedade identifica como feminino. E, não raramente, ao extremo: o tom dramático, o gosto por teatro e musicais, o talento vocal treinado em montagens locais amadoras das peças que adora, as roupas cor-de-rosa, os sapatinhos de salto, os brinquedos, os livros, os desenhos, a forma de andar, de falar, de pensar e de se expressar.
Paxton, uma doutora pela Universidade da Califórnia que leciona na unidade local da mesma instituição e atende crianças e adolescentes há mais de 15 anos, lembra que, historicamente, a maioria dos meninos que gostam de se travestir ou de brincar com brinquedos de meninas crescem e se tornam homens gays. "Mas uma pequena porcentagem, e não sabemos qual é esse numero com precisão, cresce como Danann", diz. "Suspeito que ela vá sempre se identificar como mulher, embora não dê para garantir. Ela se mostra coerente."
Danann diz que sempre teve certeza de que era menina. Por seis anos, essa certeza foi solitária.
Do momento em que a criança começou a se expressar até seguirem a orientação da terapeuta e de médicos decidirem pela transição --passar a vesti-la e tratá-la como garota, sem intervenção cirúrgica--, seus pais, a instrutora de ioga Sarah, 40, e o policial Bill, 43, se viram envoltos em dúvidas.
O mais natural, os especialistas explicam, é os pais acreditarem que aquela insistência em vestir-se e apresentar-se e comportar-se como alguém do sexo oposto seja uma fase. E, sem evidências físicas ou genéticas de que haja algo diferente com seus filhos, entender o que está acontecendo com a criança torna-se ainda mais difícil.
"Até o aparecimento da internet, os pais de crianças transgênero tinham certeza de que eram os únicos no planeta a enfrentar o dilema da variação de identidade de gênero diante do sexo genotípica, fenotípica e bioquimicamente coerente do filho", escreve Norman Spock, endocrinologista do Hospital Pediátrico de Boston e professor da Universidade Harvard, no prefácio de "The Transgender Child" (a criança transgênero, Cleis Press, 2008).
Não há estatísticas confiáveis sobre quantas crianças nos Estados Unidos (e menos ainda no mundo) sejam transgênero. Na literatura especializada, médicos, psicólogos e sociólogos evitam palpites, ressaltando que, como não se permitem pesquisas populacionais a esse respeito (por exemplo, não há pergunta sobre filhos transgênero no Censo), muitos casos permanecem encobertos.
As tentativas de fazer a transição, como no caso de Danann, são relativamente recentes: nos EUA, ocorrem há cerca de uma década. A amostragem de adultos e jovens submetidos ao processo --que em crianças e adolescentes de até 16 anos não envolve procedimentos cirúrgicos e se baseia na questão da identidade-- não é suficiente para um estudo mais elaborado.
Um levantamento de 2011, feito pela escola de direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e muito citado, estima que 0,3% da população adulta dos EUA, ou cerca de 700 mil indivíduos naquele ano, seja transgênero. Os números se apoiam em pesquisas nos Estados de Massachusetts e Califórnia e em dados reunidos por instituições ligadas à comunidade LGTB (lésbicas, gays, transexuais e bissexuais).
Em "The Transgender Child", as autoras Stephanie Brill e Rachel Pepper citam especialistas que calculam o percentual de crianças transgênero no país em 0,2% --mas alertam que o dado possa estar subestimado. A projeção mais consensual diz que três em cada quatro dessas crianças sejam meninas transexuais (nascidas meninos). Como Danann, observa Cindy Paxton, elas costumam manifestar muito mais cedo o desconforto com o próprio corpo do que os meninos trans, os quais muitas vezes passam a infância como molecas e a adolescência como mulheres lésbicas até concluírem ser homens transexuais.
PERSPECTIVA Nos últimos cinco anos, porém, os casos de crianças transgênero têm se tornado mais proeminentes. "Talk shows", programas de reportagens com grande audiência e o noticiário cotidiano deram visibilidade à questão e acabam ajudando pais como Sarah e Bill a ganharem perspectiva e compreenderem que seu caso está longe de ser um fato isolado e intransponível.
Neste ano, o caso da garotinha transgênero Coy Mathis, 6, mereceu longos minutos na TV americana e manchetes em jornais e sites quando seus pais passaram a educá-la em casa porque a escola onde estudava, no Colorado, proibiu-a de usar o banheiro feminino por considerá-la um menino.
Há duas semanas, Mark e Pam Crawford, da Carolina do Sul, abriram um processo contra o Estado porque seu filho adotivo, nascido com órgãos reprodutivos femininos e masculinos, teve o pênis e os testículos removidos aos 16 meses, sob anuência dos assistentes sociais responsáveis. Hoje, aos oito anos, a criança --adotada pelo casal após o procedimento cirúrgico-- se manifesta como menino, e não como menina.
"Dos poucos arrependimentos que tenho, o que mais me incomoda é não ter sabido como lidar [com Danann] mais cedo", diz Sarah Tyler, que mantém um grupo de apoio, o ShiftHappens ("a transição acontece", um trocadilho com a expressão americana "shit happens", algo como "às vezes, dá merda"), criado com uma amiga cuja filha adolescente, nascida homem, se matou.
Sarah e a amiga se conheceram em um seminário que a Igreja Unida em Cristo, frequentada pela mãe de Danann, organizou para informar os fiéis sobre o tema e para acolher os Tyler. De quatro pessoas no início, o grupo que se reúne uma vez ao mês em Orange County hoje tem 38, incluindo pais ou irmãos de uma mesma criança ou adolescente.
Sarah repassa com frequência a imensa solidão de descobrir aos poucos que seu filho ou filha tem uma incongruência de gênero --termo com que o novo DSM-5 substituiu o criticado "transtorno de identidade de gênero" usado nas versões anteriores do manual de estatística e diagnósticos da psiquiatria. Hoje o que sua filha tem não é considerado uma doença psiquiátrica, embora, como explica Cindy Paxton, o diagnóstico de transtorno muitas vezes seja exigido pelos seguros médicos americanos para cobrirem as despesas.
"Naquela época", lamenta a instrutora de ioga, não tinha nada sobre o assunto na internet. "Nunca tive amigos transgênero. Tenho amigos gays, mais gays do que lésbicas. Mas não transgênero. Muito menos crianças."
Foi, então que, sem saber como as coisas foram dar naquela cena, ela viu Danann tentar se mutilar aos quatro anos. Sarah conta que o flagrou --a mãe ainda mistura os pronomes ao falar do passado-- com uma tesoura infantil nas mãos, o pênis sangrando. "Tentando resolver sozinho o problema'", relembra. "Tirei a tesoura, ele não relutou. Liguei para a emergência. Não sabia o que fazer."
O corte era superficial, mas a situação ia se tornando progressivamente assustadora para os Tyler. Meses mais tarde, no episódio que culminaria com a consulta a Cindy Paxton e a conclusão, logo de cara, de que a criança era transgênero, Danann tentaria se matar.
Naquela altura, Danann já gostava de se fantasiar de personagens femininos e, na festa de Dia das Bruxas daquele ano, havia escolhido ser uma Southern Belle --as moças sulistas do século 19 e início do 20, das quais a personagem Scarlett O'Hara é o ícone maior. O pai achou que eram babados demais. A fase dos vestidos, disse Bill, precisava acabar.
Não era o que Danann achava. A criança saiu arrastada pela mãe da loja de fantasias. Gritou, mordeu, chorou. No caminho de volta, batia com força a cabeça no vidro do carro. "Ela dizia que queria morrer, e eu pensava a qual hospital deveríamos levá-la", lembra Sarah.
Quando a mãe estacionou diante da casa, a criança saltou repentinamente e correu para o meio da rua. Um motorista freou, e, apavorado, pediu desculpas. Danann revidou com tapas e a pergunta: "Por que você freou? Eu quero morrer!".
ROMARIA Depois disso, a romaria por psicólogos e psiquiatras se tornou intensa. Transtorno de deficit de atenção e hiperatividade, bipolaridade: os diagnósticos eram tão variados quanto imprecisos. Até que, no Hospital Infantil de Orange County, um painel de psiquiatras, pediatras e endocrinologistas levantou a hipótese de Danann ser transgênero. "Meu marido queria saber o que diabos isso significava", diz Sarah, que, de sua parte, sentiu-se aliviada por descartar outro dos diagnósticos aventados, o de esquizofrenia.
A suspeita foi confirmada depois pela psicóloga Cindy Paxton, mas para Bill Tyler (e de certa forma, para Sarah) a compreensão do que a filha vivia só viria mesmo com um documentário de TV apresentado pela veterana Barbara Walters, "My Secret Self" ("meu eu secreto") e levado ao ar em 2007.
No programa, a personagem central é Jazz Jennings, uma menina dois anos mais velha que Danann, também transgênero e também segura de sua identidade. Jazz, hoje adolescente, tem página no Facebook, sua própria ONG para crianças transgênero (TransKids Purple Rainbow, algo como "o arco-íris roxo das crianças transgênero"), e é convidada assídua de "talk shows" vespertinos.
"Foi uma revelação", conta Sarah. "Essa garotinha tinha muita coisa igual à Danann, até a queda por sereias [psicólogos atribuem a predileção ao fato de as sereias serem femininas da cintura para cima e indiferenciadas da cintura para baixo]. Ficou óbvio que tínhamos de fazer a transição."
No quarto de Danann não há sereias, ao menos não visíveis. Há uma pilha de livros sobre teatro e musicais. Em uma caixinha, ela guarda seus CDs preferidos. "Esse, do Fantasma da Ópera', você já ouviu? Eu adoro, adoro. É lindo."
Quase tudo no cômodo remonta a musicais e filmes clássicos. "Quero trabalhar na Broadway" é a resposta imediata que Danann dá à pergunta que toda criança ouve inúmeras vezes na infância.
Ela diz ter escolhido o que vai ser quando crescer aos cinco anos, ao ver "O Fantasma da Ópera". No dia da visita da Folha, ensaiava para uma montagem amadora de "Annie", clássico sobre uma garotinha órfã dos anos 30. A história teve uma versão no cinema em 1982, 21 anos antes de Danann nascer. "Também gosto de desenhar. E de ler. Sou bem artística."
E de moda? "Eu gosto", diz, explicando aspectos dos figurinos das peças; conhece de cor os detalhes de diferentes montagens do musical "Wicked", baseado em "O Mágico de Oz", de L. Frank Baum; mostra vídeos de maquiagem da peça e, num palco em miniatura, como uma casinha de bonecas, faz marcações para os atores.
A curiosidade com que Danann enche o interlocutor de perguntas e o vigor com que fala de seus interesses cessa quando o assunto é sua vida de antes da transição. "A escola e as pessoas eram chatas".
Após levarem-na à psicóloga, os pais decidiram tirá-la da escola particular de orientação luterana onde Danann estudava e onde, segundo a família, sofria bullying por querer usar peças de roupa mais femininas ("tops sob a camiseta, pulseirinhas; não vestidos", detalha Sarah). Na escola nova, um colégio público da região, ela se apresenta como menina sob consentimento da direção. Ali, ela tem amigos e, se lhe perguntamos se está feliz, consente com a cabeça, sorrindo, antes de desconversar.
De todos os pertences que tomam seu quarto, o preferido é o pôster com dedicatória de Ricki Lake, uma humorista que tem um "talk show" matutino e com quem, conta a mãe, a menina mantém contato. Danann e Sarah foram duas vezes ao programa. "Eu adoro a Ricki", confirma a criança.
Ela também esteve no programa vespertino do jornalista Anderson Cooper, no ano passado. A aparição rendeu críticas e mensagens agressivas para Sarah, acusando-a de "fazer" aquilo com o filho.
DIVAZINHA A professora de ioga diz que nunca quis ter uma menina. "Queria ser a rainha da minha casa, sozinha. E hoje tenho essa divazinha aí", brinca. "Mas é claro que nenhum pai pode fazer isso com um filho. Você não faz uma pessoa mudar de gênero, não dá. Isso é ela. É Danann."
De nome, aliás, ela não precisará trocar. O que os pais escolheram antes de ela nascer, de origem gaélica, em consonância com a ascendência irlandesa da família, é unissex. Remete ao "Tuatha dé Danann", povo da divindade Danu, espécie de mãe dos deuses e da terra na mitologia celta. O nome, conta Sarah, "pode ser traduzido também como criança de Deus' ou criança das fadas', conforme a versão". "Combina mais com ela do que eu poderia imaginar."
Sarah e Bill têm outro filho, William James, dois anos mais velho que Danann. Mais reservado, o adolescente conhecido como Jamie quando pequeno passou a pedir para ser chamado de James, nome mais másculo, quando a irmã fez a transição. Hoje ele se apresenta como Will e parece entediado com a atenção dispensada a Danann. "Mas ele a defende, e os dois se dão bem", avalia a mãe.
Com o resto da família, a relação não é tão natural. A mãe e a avó de Sarah, que a criaram, aceitaram a transição de pronto. Seu pai e sua avó paterna nunca entenderam o processo, e a família rompeu. Os pais de Bill mantêm contato, mas evitam encontrar a neta.
Danann está sendo monitorada pela endocrinologista pediátrica Susan Clark, do Hospital Infantil de Orange County, para detectar o início da puberdade.
Por decisão da família, dos médicos e sobretudo da própria criança, Clark vai usar inibidores hormonais para "frear" o desenvolvimento das características sexuais secundárias --voz grossa, pelos, pomo-de-adão. É como apertar um botão de pausa, para atenuar o dimorfismo sexual (a diferença de características físicas básicas, como altura) e permitir que, aos 15 ou 16 anos, Danann possa decidir se quer continuar a transição ou manter o sexo com o qual nasceu.
REVERSÍVEL "Tudo feito nessa idade tem de ser reversível; isso é fundamental", enfatiza a psicóloga Paxton. O processo, diz, só pode ser iniciado depois do diagnóstico, e o diagnóstico implica descartar todas as possibilidades de transtornos psiquiátricos. "A criança, por exemplo, não pode ter delírios; tem de ter conexão com a realidade." A terapeuta explica que a conclusão apontada deve ser de que se trata de uma criança típica, cuja única incongruência é estar no corpo errado.
Depois dos supressores, que Danann tomará por toda a vida caso se mantenha na sua decisão, ela poderá, já adolescente, receber hormônios femininos --estrógeno, essencialmente-- para desenvolver seios e outras características das mulheres. Não se fala ainda na eventual cirurgia de mudança de sexo --ou de confirmação de sexo, no jargão dos ativistas (eles também preferem os termos "disforia de gênero" e "variância de gênero" em vez de "incongruência", embora a WPath, maior associação médica de saúde transexual, tenha visto a recente mudança no DSM como um progresso).
Em mais de quatro horas de conversa, apenas uma vez --ao falar das contas da casa-- Sarah mencionou um "fundo de cirurgia de Danann", encadeando-o com um "fundo para a faculdade".
Nos EUA, a legislação quanto à questão cirúrgica e o custo das operações variam conforme o Estado; há casos de adolescentes de 16 anos que passaram pelo processo. Os valores sobem segundo o grau de intervenção; mas, em geral, a retirada do pênis, com a criação de uma vagina revestida com partes do órgão masculino e mais algumas cirurgias plásticas complementares, é estimada em US$ 50 mil (R$ 107 mil), parcialmente cobertos por alguns seguros-saúde.
Em março, a administração do Medicaid --o programa de assistência médica para a população mais pobre mantido pelo governo federal norte-americano-- chegou a anunciar que abriria um debate público sobre a cobertura da cirurgia, mas recuou após 24 horas, preferindo examinar a questão em um procedimento interno sem participação popular.
No Brasil, o SUS cobre a operação, que há dois meses passou a poder ser realizada a partir dos 18 anos, em vez de 21 --o tratamento hormonal pode ser iniciado aos 16.
Sarah especula sobre como será, no futuro, a aparência de Danann, sua aceitação e sua integração à sociedade.
Apesar de haver uma tradição de respeito e admiração por pessoas como Danann em algumas comunidades indígenas dos EUA --à semelhança do que acontece na Tailândia, onde transexuais são vistos como uma alma elevada que alia ambos os sexos (e onde as cirurgias de mudanças de sexo são oferecidas em panfletos distribuídos nas ruas)--, a sociedade americana ainda as vê, em geral, como estranhas, mesmo na comunidade ativista gay e lésbica. A própria Sarah perdeu o emprego em uma proeminente academia de ioga após levar os filhos ao trabalho, em um dia sem babá, e uma das alunas incomodar-se com a criança transexual.
Casos em que a pessoa transgênero é proibida de usar o banheiro destinado ao sexo com o qual se identifica têm proliferado, mas a expectativa dos envolvidos é que a exposição leve à informação e à aceitação. Danann não tem tido esse problema, mas foi expulsa do grupo de bandeirantes após descobrirem que ela nascera menino.
Nos momentos em que visualiza o futuro de Danann com mais otimismo, Sarah cita o exemplo de Christine McGinn. Hoje cirurgiã plástica especializada em mudança de sexo, McGinn, nascida homem, foi membro da Marinha americana e cirurgião de bordo em duas missões da Nasa. "A dra. McGinn, você precisa ver, é linda. Nós a conhecemos na gravação do documentário Trans', e ela disse que, se Danann quiser, fará todo o possível por ela [em termos de cirurgia] no futuro."
Entre seus planos para a Broadway, suas certezas espantosamente maduras para a idade e o que conseguiu até agora, Danann não se enxerga de outra forma, no futuro, que não como mulher.
Sua sexualidade ainda não se manifestou, e não é possível saber, ainda, qual a sua orientação. Paxton e outros estudiosos explicam que o vasto espectro da orientação sexual nem sempre está ligado à identidade de gênero (no passado, chegou-se a descrever os transexuais como homofóbicos radicais: pessoas que sentiam atração sexual e afetiva pelo mesmo sexo, mas não aceitavam esse sentimento e, por isso, achavam que seu sexo biológico estava "errado").
Neste momento, Danann não se interessa por meninos. Para ela, garotos "são muito chatos". Por causa do ativismo, tem duas amiguinhas trans, de sete e nove anos. Sarah, porém, diz que transexualismo nunca é um assunto mencionado entre elas. "Quando se encontram, são apenas menininhas brincando."

A Calúnia - uma introdução



Apeles foi um pintor grego, tido como o maior pintor de sua época e talvez um dos maiores dentre todos. Viveu no século IV a.c. e deve sua fama a relatos de seus contemporâneos, uma vez que nenhuma de suas pinturas sobreviveu ao tempo.

Uma de suas pinturas mais famosas é o quadro “A calúnia” que foi descrito pelo poeta Luciano. Não existe sequer uma imagem sobre a pintura original, mas muitos artistas, baseando-se na descrição de Luciano, fizeram cada qual sua versão.

Apelles foi acusado de difamação pelo tirano Dionísio, o velho. Pintou então esse quadro, com o objetivo de se defender da acusação, e acabou realizando uma alegoria da calúnia, na qual retrata as figuras envolvidas e sua dinâmica.

Eis a descrição do Poeta Luciano:

Na direita um homem estava sentado, com orelhas enormes, bem parecidas com as do Rei Midas. Ele estendia a mão à Calúnia que se aproximava. A seus lados estavam, parece-me, duas mulheres: Ignorância e Suspeita. Do outro lado avançava a Calúnia. Mulher extraordinariamente bela, fogosa e agitada, que parecia sentir raiva e ressentimento e levava na mão esquerda uma tocha acesa. E com a outra mão arrastava pelos cabelos um jovem que levantava ao céu suas mãos e chamava os deuses a testemunho. Um homem pálido e feio ia à frente deles, com olhar febril, parecido àqueles que saem esqueléticos uma longa doença. Tal que alguém poderia pensar que fosse o Rancor. E havia mais duas mulheres acompanhando a Calúnia, incitando-a enfeitando-a e aprontando-a. Como depois o monitor me explicou uma era a Insídia e a outra a Fraude. Atrás seguia uma mulher toda vestida de luto, negras e dilaceradas suas roupas. Acho que diziam ser o Arrependimento. E ela virava para trás o rosto coberto de lágrimas e de vergonha, olhando a Verdade que avançava.

A versão pintada por Botticelli é uma das mais famosas.



A Artista Irma Renault, pintura mineira falecida em 1995 , realizou ao longo de 18 anos várias versões baseadas na descrição de Luciano. O quadro que examinaremos aqui é sua última versão, datado de 1990.



Nas postagens seguintes analisaremos o quadro de Irma Renault.









quinta-feira, 13 de junho de 2013

Bertold Brecht

"Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo".

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Versões de mim (Veríssimo) & Se (Iano de Carvalho Pereira)

Se...
Iano de Carvalho Pereira

Se eu pudesse.
Ah! Se eu fosse:
Se de repente voltasse...

Se criasse-se
um Se,
que se você falasse
assim se realizasse,
seria o Se
senha e Cársere:

Se...:
Partícula de indeterminação
de um sujeito.




Palavrinha mais infernal essa: se... E se eu tivesse feito isso, e se tivesse feito aquilo... Brilhantemente apresentada por Iano como a partícula de indeterminação de um sujeito. Veríssimo nos presenteia abaixo com sua versão de nossos "ses", sempre tão arrependidos do que não foi...







Versões de mim

Luiz Fernando Veríssimo



Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.

Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste…

Agora mesmo neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome do bar é Imaginário - sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:

- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo

E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.

- Por que? Sua vida não foi melhor do que a minha?

- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei a seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia..

- Eu sei, eu sei… disse alguém sentado ao lado dele.

Olhamos para o intrometido… Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:

- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.

- Como é que você sabe?

- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me tirei… Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante…

Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou.

- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e agora com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio…

- E o que aconteceu? perguntamos os três em uníssono.

- Lembra aquele avião da VARIG que caiu na chegada em Paris?

- Você…

- Morri com 28 anos.

- Bem que tínhamos notado sua palidez.

- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo…

- E ter levado o chute na cabeça…

- Foi melhor, continuou, ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado…

- Você deve estar brincando.

Disse alguém sentado a minha esquerda. Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.

- Quem é você?

- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.

Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.

- Quem é você? Perguntei.

- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.

- E..?

Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo…