quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Você pega o primeiro ônibus?

Uma amiga me contou o que escutou durante uma palestra.

"Quando vamos andar de ônibus como fazemos? Pegamos o primeiro ônibus que passa ou esperamos até que passe o ônibus que vai nos levar onde queremos ir? É claro que esperamos o ônibus certo. Então porque fazemos diferente com nossos pensamentos? Deveríamos pensar naquilo que vai nos levar onde queremos ir. Mas acabamos por agarrar no primeiro pensamento que passa na nossa cabeça e que vai nos levar pro lugar errado."


Contribuição da amiga Michelle Campos


"Em wolof, língua do Senegal: amigo e parte (pedaço) são expressos pela palavra "harit". Você ser amigo é ser um pedaço do outro."

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Um beliscão rodado e uma despedida


Raquel chegou ao consultório muito deprimida. Dizia que em sua casa o irmão mais velho era do pai, pois fez engenharia e tudo mais que o pai esperava dele. A irmã mais nova era da mãe, pois era delicada, feminina, como a mãe valorizava. E que ela era do cachorro. E completou:

- Pensando bem, nem do cachorro eu sou. Ele é da minha irmã.

 Seu pai era um homem extremamente severo, seco, rígido, bravo e impulsivo. Uma de suas maiores manifestações de afeto, só explicitada quando gostava muito de alguém, era:

- Senta aí e vamos ver televisão.

Toda essa efusão de afetividade só era superada, em raríssimas ocasiões, quando ele realmente gostava demais da pessoa. Nessa hora ele manifestava todo seu amor dando um beliscão rodado na barriga do cidadão, o que deixava um enorme roxo de lembrança ao infeliz.

Raquel contou muito de sua história nos nossos encontros. Em certo momento lhe disse:

- Você diz que ninguém em sua casa gosta de você. Mas seu pai, que passou por três situações muito drásticas - um acidente de carro quase fatal, um ataque cardíaco seguido de cirurgia e uma falência - em todas as três, quem ele queria que estivesse por perto? Quem ele chamou primeiro? Qual foi a primeira pessoa que ele desabafou que tinha falido?

- Eu... Mas isso não quer dizer que ele goste de mim! É que ele fica muito nervoso e agressivo e, como eu também sou brava, e respondo à altura se ele me xinga, ele fica mais à vontade comigo nessas situações. Não se sente culpado se começa a berrar comigo, porque eu berro também.

- Pode ser. Mas é evidente que ele quis a sua presença em seus momentos mais difíceis. Pode ser que tenha feito isso para evitar a culpa... mas certamente também confia em você, acha que pode contar com você, acha você forte. E acho que ele já te convidou várias vezes pra ver televisão e já deve ter lhe dado alguns beliscões, não?

- já sim...

- Pois é. Ele gosta de você. Pode não saber manifestar isso direito, mas gosta. Pode sentir orgulho do filho obediente que segue tudo que ele fala, mas isso não quer dizer que ele não goste de você.



Quantas vezes duvidamos que somos amados? Quantas vezes duvidamos que é possível alguém nos amar? E porque não acreditamos nisso?

Vários são os motivos. Muitos relacionados à nossa infância, à problemas com nossa autoestima de alguma forma precocemente abalada. Se não vemos valor em nós mesmos como imaginar que outra pessoa veria?

Bergman foi um cineasta de filmes, quase em sua totalidade, atormentados. Lindos, mas atormentados. Entendemos um pouco melhor o porquê desses filmes quando assistimos ao filme "As melhores intenções", de Billie August. Esse filme é baseado em um livro escrito pelo próprio Bergman, no qual o cineasta relata a formação de sua família original. Trata-se da historia de seus pais, do início do relacionamento entre os dois, de seu casamento e relata ainda, se bem me lembro, até que o próprio Bergman tivesse uns 6 ou 7 anos. 

É um lindo filme sobre a história de um desencontro. O pai de Bergman era um homem extremamente humilde, austero e rigoroso. A mãe era da alta sociedade local, de uma família de intensa vida social. Após o casamento o pai muda-se para o interior pobre e distante, em busca de seu ideal de vida: ser pastor e cuidar das poucas almas viventes nesse lugarejo. São intensos e frequentes os conflitos do casal, sentidos intensamente pelo filho. Também é muito difícil para o filho assimilar o comportamento violento e imprevisível do pai, com agressões muitas vezes imprevistas e incompreensíveis. 

Apesar de tudo, ao fim do filme, não conseguimos sentir raiva dos pais de Bergman. Eu, ao menos, não consegui. O título me parece perfeito: "As melhores intenções". Eles fizeram exatamente o que deram conta. Não poderiam ter feito diferente. Não tinham a intenção de criar uma criança terrivelmente angustiada. Mas não conseguiram evitar que isso acontecesse.

O próprio Bergman parece indicar a mesma interpretação para esse filme. Ele contou em uma entrevista que o filme mudou sua postura em relação aos seus pais. "Depois disso", disse ele, "toda e qualquer forma de reprovação, culpa, amargura ou até um vago sentimento de que eles estragaram minha vida se extinguiu para sempre de minha mente."

Às vezes temos dificuldade de decodificar a linguagem de amor da outra pessoa... não sabemos ou não queremos escutar que nos chamar para assistir televisão possa ser um convite de amor. Também acontece da outra pessoa ter um ciúme ou rivalidade especialmente complicada em relação à nossa pessoa. Mesmo que em nada colaboremos a pessoa só se relaciona conosco com uma hostil rivalidade.  Ou até somos incentivados desde meninos, pelos próprios pais, a uma competição que acaba por nos distanciar de quem poderíamos amar. Em outros momentos as pessoas não fazem como nós mesmos faríamos, não são tão cuidadosas ou atentas aos detalhes. Mas isso também não quer dizer que elas não nos amam.

Uma paciente chateou-se quando percebeu não ganharia um anel de formatura. Quando sua irmã se formou ela lembrou aos pais que eles poderiam providenciar o anel. Mas na sua vez, quando ela própria se formou, ninguém sem lembrou. Mas, mesmo sem anel, foi importante para ela lembrar-se da enorme alegria de seus pais e sua irmã em todas as comemorações. O pai, que tem muitos problemas para controlar a bebida, nem bebeu no baile! Quer demonstração maior de amor? Se ela não parasse para reconsiderar seu ressentimento, perceber como ele era irrelevante, acabaria sem saborear a alegria de sua formatura.

Noutros momentos exigimos tanto uma forma muito específica de manifestar o amor que indicamos querer mesmo fixar a certeza de ser amado, garantir um amor eterno e indestrutível. Como se houvesse alguma forma de se garantir isso...

Mesmo se não formos cristãos, vivemos em uma cultura cristã e estamos sujeitos, muitas vezes sem perceber, a seguir os seus valores. Mas, no que diz respeito ao amor, fazemos alguma confusão.

O amor cristão é gratuito. Deus nos ama. Ponto. É nosso pai, nos ama e tá acabado. Mesmo que façamos atrocidades, ele continuará nos amando e confiando que perceberemos o erro mais cedo ou mais tarde e retomaremos para o bem. O amor gratuito é fundamento para um cristão verdadeiro, um cristão que pense como um cristão primitivo, original.

Para os gregos era diferente. Há um ditado grego que diz: como os deuses não precisam dos homens, eles não amam os homens. Esse ditado expressa uma forma de amar ligada à precisão, à necessidade. É um amor de uma condicionalidade muito específica. Só se o outro precisar de mim é que ele vai me amar. E, logo, não há aqui a gratuidade da forma cristã de amar.

Somos cristãos, mas quantas vezes vivemos como gregos, no que diz respeito ao amor? Quantas vezes queremos que o outro necessite da gente pra “garantir” o seu amor? Mas não seria um amor muito mais claro e evidente se ele existisse sem a menor necessidade de coisa alguma? Amo porque amo, e pronto. Nossos filhos, por exemplo. Dão tanto trabalho, despesa e até contrariedade. E amamos, mesmo assim.


Tal como Rachel tinha dificuldades com seu pai, Verônica tinha dificuldades com sua mãe. Ela sempre lhe tratava com algum desdém ou hostilidade. De todos os filhos e filhas, somente Verônica se parecia com o pai. Tal como ele, tinha a pele muito clara e os cabelos louros. Seus temperamentos também combinavam, ambos extrovertidos, alegres e bem brincalhões. Se davam muito bem. O mesmo não se pode dizer da relação entre a mãe e o pai. Era difícil e amarga. Mais para o final de sua vida, o pai ficou mais ameno com a mãe e até tentou uma aproximação. Mas a mãe nunca abriu mão de sua mágoa. E essa mágoa acabava desaguando em Verônica. E desabou sobre ela, com especial força, depois que o pai faleceu.

Sua mãe ainda viveu bons anos mas, mesmo com momentos de alguma aproximação, a relação entre as duas nunca se resolveu. Quando enfim a mãe adoeceu gravemente e foi internada, Verônica a visitou uma ultima vez e chorando muito, pediu perdão por qualquer coisa que tivesse feito, por não ser uma boa filha, por ser as vezes irritada ou impaciente. Sua mãe, admirada, disse:



- Que isso, minha filha... você foi uma filha tão boa! Sempre cuidou muito de mim... eu que peço desculpas... desculpe, filha... às vezes eu não conseguia esquecer minhas mágoas e descarregava em você... mas eu te amo, filha, muito! Você é uma filha maravilhosa! 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Loja de Deus


Andando na rua vi uma loja com uma placa luminosa onde estava escrito:

LOJA DE DEUS

Entrei e vi um balconista com cara de anjo.
- O que você vende aqui? - perguntei.
- Todos os dons de Deus.
- Custa muito?
- Não. São de graça.

Contemplei a loja e vi pacotes de esperança, caixas de sabedoria, jarras de confiança... Entusiasmado, pedi:

- Por favor, eu quero muito amor, esperança, bastante felicidade para mim, minha família e para todos e também muita paz.

Então o balconista preparou-me um pequeno pacote que coube na palma de minha mão.
Surpreso perguntei-lhe:

- Está tudo aqui? É possível?
Ele me respondeu, serenamente:
- Meu querido irmão, na loja de Deus, apenas sementes.





“Semente não é aquela que brota
mas toda que cai:
a intenção”

álvaro andrade garcia

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Pombo correio



Eduardo chegou absolutamente contrariado no consultório. Não sabia o que estava fazendo ali. Empresário de sucesso, muitíssimo rico, tudo ia bem em sua vida... Mas vem o médico dizendo que aquele mal estar terrível que ele sentia não era nada no coração, que ele não ia morrer de um ataque cardíaco, que eram crises de pânico e que ele precisava procurar um psicólogo... E chega ele, chateado mesmo por estar no consultório. Aqui estava só por não aguentar mais as crises que se repetiam.

Ele tinha um pequeno banco, mas grande o suficiente para que possuísse uma fortuna. Tinha um avião e um helicóptero, mas que não tinham utilidade pra ele. “Mas o que eu ia fazer com o dinheiro? Precisava gastar com qualquer coisa...” Tinha um Lamborghini na garagem, que só usava para sair no sábado de manhã, dar uma passada, acelerando, na porta da casa dos conhecidos para produzir inveja, e voltar pra casa, estacionar, e pegar Fiat Palio que gostava mesmo de dirigir. Eduardo dava ao filho de 6 anos 200 reais por dia para que ele lanchasse na escola.

- O que que tem? Eu não tinha esse dinheiro pra lanchar quando eu era menino...
- Você vai estragar seu filho. Ele não vai ter nenhuma noção de valor.

Ao contar sua história relembrou que resolveu ficar rico aos 11 anos de idade. Seus tios paternos eram bem de vida. Seu pai tinha o mesmo padrão, mas quebrou. E a família começou a viver com alguma dificuldade. Que nem era tanta, mas era o suficiente para que ele se sentisse muito humilhado frente aos tios ricos. “Meu pai era bom demais, honesto demais... ninguém vira nada desse jeito...” Um dos tios era o mais rico de todos e trabalhava com agiotagem. E ele resolveu, aos 11 anos, que ficaria mais rico que esse tio. E conseguiu. E agora todo esse mal estar... ele não entendia o que lhe acontecia.

Eduardo também contou que mais novo, com uns 9 anos, seu pai lhe presenteou com uma coleção de pombos correio. Eram o xodó de seu pai. Levava-os ao sítio e eles voltavam sozinhos para o apartamento. Sabendo que o filho tinha pelos pássaros a mesma adoração, presenteou-o com eles. E ele cuidou dos pássaros até quando resolveu ficar rico, aos 11 anos.

- A gente precisa se livrar das bobagens pra enfrentar a vida. Vendi minha coleção.
- Pra quem?
-Para um clube de tiro.
- !?
- Que que tem? Que cara é essa?
- Pra um clube de tiro?!
- É. Não tem nada demais...
- Pelamordedeus... Clube de tiro não! ... Você deve ter ficado arrasado...
- Claro que não! Fiz o que tinha que ser feito...
- Ficou sim... não é possível que não tenha sentido. Você adorava aqueles pombos...
- Não fiquei.
- Vamos apostar? Aposto que ficou. Posso ligar pra sua mão e perguntar se ela se lembra disso?
- Claro! Apostado. Pode ligar.

-Alo? Dona fulana? Aqui quem fala é o beltrano, psicólogo do seu filho... Tudo bom? ... Estamos com uma dúvida aqui e eu acho que a senhora pode nos ajudar... Lembra  de quando Eduardo vendeu a coleção de pombos correio que ganhou do pai? Lembra!? Que Bom!

- Claro que me lembro! Ele chorou três dias...
- A senhora pode dizer isso pra ele?
Eduardo ficou estarrecido...
- Mas eu não me lembrava... Como é que pode? Agora lembro, ela tem razão... Mas eu não me lembrava...

- Você teve que se anestesiar pra dar conta de fazer tudo que achava que devia, pra ficar rico... Mas a anestesia nunca é completa... A dor tá voltando agora, ou sobre a forma de crises de pânico, ou sobre a forma de saudade de tudo que você deixou de viver, que jogou fora, pra conseguir o que queria... Sem raízes tudo é vertigem. Você abandonou seus valores mais importantes pra dar conta de ser duro, como achava que deveria ser...

A anti-intracepção é uma das escalas de avaliação da mentalidade autoritária, propostas pelo sociólogo Adorno. Diz respeito a uma dificuldade de voltar para a própria experiencia, fazer uma introspecção verdadeira e saber razoavelmente bem o que se sente e pensa. Se caracteriza por uma irritação e impaciência frente ao que é subjetivo e imaginário. E usa de vários mecanismos de defesa pra se desviar de suas próprias verdades internas.

Há várias formas da anti-intracepção se manifestar. Muitas vezes ela se revela decorrente de eventos fortemente traumáticos no passado. O sujeito evita parar e pensar, pois teme que, se o fizer, as terríveis vivencias voltarão.

O empresário referido nesta postagem possuí outra forma de anti-intracepção. Apesar de existir na sua história um aparente "trauma" - as relativas dificuldades financeiras na infância - esse episódio se caracteriza mais por vivencias de humilhação e vergonha, e não de panico, medo ou terror, como esperado em eventos verdadeiramente traumáticos. Nestes casos o núcleo é muito associado a uma mentalidade excessivamente convencional, presa a estereótipos e modelos rígidos. Mais do que não poder pensar por causa de um trauma, estamos diante de um não conseguir pensar, por estar fixado a categorias de pensamento que não permitem a ampliação da consciência, por fechar muito as possibilidades de outras leituras e interpretações. 




segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Olavo de Carvalho e Viktor Frankl - 2

A mensagem de Viktor Frankl
Olavo de Carvalho
No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado - e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser "homens do seu tempo", alguém muito maior do que o século.

Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.

Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.

O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor - o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.
O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda.

Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.

Assim ele registra, no seu livro Man's Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:

"Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: 'Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita'."
Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer "proveniente do espírito". Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido."

Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.

Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.

Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.

Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos - é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.

A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais - os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:
"Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente." (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)

Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.

Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: "SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus.""

Olavo de Carvalho e Viktor Frankl

Redescobrindo o sentido da vida
Olavo de Carvalho

"Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza, comportando-se como um bicho. Victor Emil Frankl, psiquiatra, judeu e austríaco como Freud, não acreditava nisso, mas não teve de inventar uma resposta ao colega: encontrou-a pronta no campo de concentração de Theresienstadt durante a II Guerra Mundial. Ali, reduzidos a condições de miséria e pavor que no conforto do seu gabinete vienense o pai da psicanálise nem teria podido imaginar, homens e mulheres habitualmente medíocres elevavam-se à dimensão de santos e heróis, mostrando-se capazes de extremos de generosidade e auto-sacrifício sem a esperança de outra recompensa senão a convicção de fazer o que era certo. A privação despia-os da máscara de egoísmo biológico de que os revestira uma moda cultural leviana, e trazia à tona a verdadeira natureza do ser humano: a capacidade de autotranscendência, o poder inesgotável de ir além do círculo de seus interesses vitais em busca de um sentido, de uma justificação moral da existência.

Uma recente viagem a Filadélfia, onde a Universidade da Pennsylvania comemorava com um ciclo de conferências o centenário de nascimento do criador da Logoterapia, trouxe-me a lembrança animadora de que na história das idéias tudo se dá como na vida dos indivíduos: mesmo a extrema indigência espiritual consolidada por séculos de idéias deprimentes não impede que, de repente, a consciência do sentido da vida ressurja com uma força e um brilho que pareciam perdidos para sempre. A evolução do pensamento moderno, de Maquiavel ao desconstrucionismo, é marcada pela presença crescente do fenômeno que denomino "paralaxe cognitiva": o hiato entre o eixo da experiência pessoal e o da construção teórica. Cada novo "maître à penser" esmera-se em criar teorias cada vez mais sofisticadas que sua própria vida de todos os dias desmente de maneira flagrante. A "análise existencial" de Frankl, a contrapelo do "existencialismo" de Heidegger e Sartre que é uma apoteose da paralaxe, recupera o dom de raciocinar desde a experiência direta, que ao longo da modernidade foi renegada pelos filósofos e só encontrou refúgio entre os poetas e romancistas.

O que Frankl descobriu em Thesienstadt foi que além do desejo de prazer e da vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a "vontade de sentido": a alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de um significado para a vida. Ao contrário, dizia Frankl, "se você tem um porquê, então pode suportar todos os comos ". A privação de sentido origina um tipo de neurose que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de sofrimento psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica , isto é, de causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade. A análise existencial é a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a reconquista do estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida. A logoterapia é a técnica psicoterápica que faz da análise existencial uma ferramenta prática para a cura das neuroses noogênicas.

Uma pesquisa da Biblioteca do Congresso mostrou que "Man's Search for Meaning", a mistura de autobiografia, análise filosófica e tratado psicoterápico em que Frankl expõe as conclusões da sua experiência no campo de concentração, é um dos dez livros que mais influenciaram o povo americano. Se, a despeito disso, a obra de Frankl ainda não alcançou o lugar merecido nas atenções do establishment acadêmico, é simplesmente porque este é o templo da paralaxe cognitiva."