quarta-feira, 24 de junho de 2015

A fresta



A briga começou de novo. Quando isso acontece é quase impossível parar. É sempre assim. Por qualquer coisa - na maior parte das vezes por um entendimento equivocado de algo que foi dito - as ofensas e grosserias se iniciam e contê-las é tarefa quase impossível. Sabe-se o final:  a exaustão  vence Eduarda, que se entristece terrivelmente. E  João permanece irritadíssimo e seguro de que tem razão, ainda por dias ou  semanas, nas quais o casal mal trocará palavra. Isso se não voltar a brigar de novo.



Brincadeira, né? Achar que ter ou não ter razão presta pra alguma coisa. René Descartes resolveu esse imbróglio já a uns 500 atrás, mas parece que ninguém contou pra gente. Inicia seu “Discurso Sobre o Método”, um dos livros mais importantes da história da filosofia, com o parágrafo: 

"O bom senso (ou a razão, preferem alguns...) é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”

É um bom texto para se iniciar uma psicoterapia de casal. Casal que procura tratamento normalmente já chega brigando. Um acusa o outro com uma facilidade impressionante. Quando a coisa parece fora de controle, leio o parágrafo acima. E digo que, isso posto, todos os presentes à entrevista podem considerar que têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o terapeuta presente na sessão, têm razão. E que isso não será discutido na terapia. Pois nunca se viu ninguém rezar para deus tirar seu excesso de razão:

- Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho...

A partir desse ponto, sugiro que cada qual pense em três características próprias que gostaria de mudar para facilitar o relacionamento. E não nos problemas que o outro tem, porque ver no outro o que ele tem de errado é fácil. O complicado é cada qual ver a parte que lhe cabe. Ou, como diria Guimarães Rosa:

"Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia."

Brigar para ter razão é brigar pelo trono vazio das pretensões.  Sentar nesse trono não leva a lugar algum. O máximo que conseguimos é colher um deserto.



A esposa estava bem alterada. Quase gritando elencava muitos motivos para sua raiva, desespero e frustração. Alguns desses bem que se adequavam aos problemas que o casal precisaria resolver. Mas o tom alto com o qual falava e, principalmente, a dureza dos argumentos que usava, faziam com que o marido emudecesse. Sentia que nada do que dissesse resolveria alguma coisa. Pelo contrário, pioraria. Sentia raiva, muita. Sentia também dor e tristeza. Pensava em como se separar com meninos tão pequenos, se desesperava ao pensar no sofrimento deles. Mas, para piorar, sabia que eles já deviam estar sofrendo com esse clima malsão em casa. E foi assim, quando o marido já alcançara o auge da desesperança, que a esposa colocou certa frase no meio de tantos impropérios:

- Fulano, eu gosto muito de você, mas...

E continuo falando no mesmo tom e com o mesmo tipo de argumento que vinha usando antes. Mas algo já acontecera. O marido estancara naquela frase.

-Mas, ela ainda gosta de mim?

Agora ele conseguia escutar alguma coisa e entender, ao menos em parte, a solidão da esposa em seu desespero.



A ciência da convivência é sutil e cheia de reentrâncias.

Os objetos coexistem. Os animais, pelo menos em sua esmagadora maioria, coexistem. Seres humanos convivem. Mais do que isto: seres humanos precisam conviver para se tornarem humanos. E conviver é diferente de coexistir. Em primeiro lugar na convivência - quando ela de fato é convivência - as pessoas envolvidas interferem, verdadeiramente, uma na outra. Modificam-se mutuamente. Após o encontro não são mais as mesmas. Em segundo lugar, na convivência não é preciso que as pessoas envolvidas concordem uma com a outra. Conviver é enxergar tudo, as concordâncias e as discordâncias, as semelhanças e as diferenças, as aproximações e os distanciamentos. É não buscar a homogeneidade nem a unanimidade. E não ter pressa diante do encontro. 

O marido acima já estava trancando com sete chaves a porta da convivência quando escutou "Eu gosto muito de você, mas...”. E foi suficiente para que ele destrancasse a porta e a deixasse aberta. Foi como se a esposa tivesse colocado o pé na porta que estava se fechando, permitindo assim alguma abertura, alguma brisa passando por essa fresta.

Já foi dito pelo filósofo Julian Marias que não se pode ser verdadeiramente inteligente sem alguma dose de bondade. E esse autor parece associar bondade a saber esperar, não fechar o sentido das coisas tão rapidamente, afeiçoar-se à realidade deixando, por isso mesmo, que ela se manifeste por inteiro e de distintos pontos de vista antes de tentar classificá-la em algum sentindo único. E que, para que isso aconteça, não podemos ter pressa. Assim, sem alguma bondade dá até para se ser rápido, mas não verdadeiramente inteligente. 

Dessa forma teríamos de optar, a cada dia, se seremos mais abertos ou mais fechados, diante da vida. Quando mais fechados ficamos mais defensivos, vivemos como se a realidade fosse algo intrinsecamente ameaçador. Assumimos então uma posição beligerante, de conflito e desconfiança frente ao mundo. E ficamos mais miseráveis, pois desprovidos da riqueza que a diversidade que a vida pode nos oferecer. 

Podemos porém optar pela abertura diante da vida. Conseguiríamos assim mais flexibilidade. E ficaríamos mais ricos, receptivos que estaríamos à diversidade das pessoas e do mundo. Aprenderíamos mais sendo receptivos à realidade e à experiência das outras pessoas. Um bom indício que estaríamos com maior abertura é a nossa postura diante erro, do engano ou da percepção de que algo nos havia escapado. Quando abertos à vida sentimos gratidão diante da percepção de que estávamos equivocados. Sentimos alegria quando admitimos que havíamos nos enganado. Gratidão e alegria justo porque agora nos aproximamos da realidade, podemos lidar com ela com mais clareza, podemos vê-la melhor.


As brigas entre Eduarda e João chegaram ao nível do insuportável, Eduarda já pensava em como fazer para separar-se. João já deixara claro que não abriria mão do filho. E eram de cidades distantes, o que dificultaria bastante a separação. Eduarda desabafa com um amigo de João, em busca de conselho. Ao saber, João indigna-se, sente-se exposto. É bem verdade que quem mais explode, quem mais vê intenções hostis em qualquer afirmação, quem mais se mostra impermeável a qualquer abordagem, é ele. Ainda assim vai conversar com o amigo, na expectativa de provar alguma coisa, de mostrar como são justificadas suas atitudes. O amigo lhe surpreende:

- João, Eduarda te ama demais...

(A fresta se abre na porta, dá pra sentir a brisa entrando...). 

Algumas horas depois, ainda sem saber da conversa, Eduarda tenta uma nova aproximação. Liga e pergunta se pode buscá-lo no trabalho com o filho, nesta tarde de sol. Moram na praia, poderiam distrair um pouco o menino. Ele topa. O encontro é bom, ela toma sol, ele nada com o filho pequeno. Voltam pra casa em outro clima. Quando chegam Eduarda percebe, aterrorizada, que esquecera a porta de casa aberta. Isso já havia acontecido antes. João sempre explodia, achava um abusurdo esse descuido. Ele vê a porta escancarada. Olha pra ela. E diz:

- Estava com saudades, né?



Finalizando, lembrei-me de um pequeno poema de meu pai, Nello Nuno:


Atrás de uma porta aberta
há outra porta
aberta.
Atrás de uma porta fechada
há outra porta
e outra porta
e outra porta
fechadas.




terça-feira, 2 de junho de 2015

VITAMINA D E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Editoria da Super Interessante, com matéria de capa sobre a vitamina D e as doenças auto-imunes. Vale a pena ler. E ler também a matéria que vai logo depois. 




AO LEITOR – VAMOS APANHAR
     EU SEI O QUE VAI ACONTECER: vamos apanhar. Vamos ser chamados de irresponsáveis por associações médicas por dar esperança a doentes sem salvação, vamos ser desqualificados como teóricos da conspiração por empresas farmacêuticas, vamos levar cutucadas de colegas jornalistas por darmos espaço demais a tratamentos sem comprovação. Tudo por causa da reportagem de capa desta edição, escrita por Daniel Cunha, que sofre de uma doença séria e, em sua própria luta para sobreviver, esbarrou numa pauta incrível. Sim, eu sei que ainda faltam muitas pesquisas antes de poder afirmar que a vitamina D evita câncer e cura depressão. Sei que incentivar as pessoas a tomar sol é muito arriscado, porque pode levar a um aumento nos casos de câncer de pele. Sei que talvez levem dez anos para que a comunidade médica tenha certeza de que o sol é mesmo fundamental para ficarmos vivos. 
     Acontece que, para alguns, dez anos é tempo demais. Daniel, nosso repórter, que tem esclerose múltipla, concluiu que não teria uma década para esperar respostas perfeitas - e saiu em busca das melhores respostas possíveis. Como ele, há milhões de pessoas no Brasil precisando urgentemente de informação - gente que pode se beneficiar do que Daniel descobriu. 
     Claro que levamos a sério nossa responsabilidade de dar informação confiável. Por isso, passamos muito tempo discutindo antes de levar o tema à capa. Mas o que nos ajudou a decidir é que temos clareza da nossa missão: trabalhamos para o público. Não para o establishment médico, não para os hospitais, não para os laboratórios. E, quando pensamos no que nosso leitor precisa saber, fica óbvio para a gente que fazer uma reportagem como essa, ainda que rodeada de incertezas, é obrigação - assim como colocar na capa os debates sobre o glúten e a maconha medicinal, duas outras histórias impressionantes ainda não inteiramente absorvidas pelas instituições médicas. Nossa obrigação é empurrar a medicina para frente, não correr atrás dela. 
     Da mesma forma, é nossa obrigação buscar respostas profundas para a crise hídrica que se espalha pelo nosso molhado país, como tentamos fazer na reportagem que começa na página 44. Sabemos que essas nossas respostas desagradam quase todo mundo. Afinal, elas revelam a profunda incompetência do governo paulista para lidar com o problema - e ao mesmo tempo deixam aparente a incapacidade do governo federal de compreender a natureza cíclica da água. Elas expõem o fato de que praticamente nenhum governo de nenhuma região do país está preparado para cuidar sistemicamente da água que precisamos para sobreviver. Vamos apanhar de todo mundo - do PSDB, do PT, do PMDB, do DEM, do PP, do PSD... 
     Tudo bem, não tem problema algum. Não trabalhamos para nenhum deles. Trabalhamos para você. 
Denis Russo Burgierman, DIRETOR DE REDAÇÃO








MATÉRIA DE CAPA – A POLÊMICA DO SOL


Um dia acordei e não senti o lado direito do rosto. Tinha desenvolvido uma doença incurável, que poderia me levar para a cadeira de rodas. Tudo indica que eu era vítima de uma epidemia global: falta de vitamina D, causada pela falta de sol.
REPORTAGEM Daniel Cunha

     UM DIA ACORDEI e não senti o lado direito do rosto. Achei esquisito, mas não dei muita importância. Nos dias seguintes, outras coisas foram acontecendo. Primeiro, perdi toda a sensibilidade no lado direito do corpo. Fiquei com falta de equilíbrio, visão turva, confusão mental. Não conseguia levantar da cama. Depois de dois meses de internações e exames, veio o diagnóstico: eu tinha esclerose múltipla, ou seja, meu sistema imunológico estava atacando meu próprio cérebro e a medula espinhal. Desenvolvi uma doença degenerativa, sem cura, que poderia me jogar em uma cadeira de rodas em menos de uma década. Um cenário desolador. Uma vez por semana eu tomava injeções de interferons (proteínas de defesa produzidas pelo próprio corpo), que acabavam por suprimir meu sistema imunológico. 
     A cada aplicação eu tinha uma febre forte e ficava prostrado pelos dois dias seguintes. Todas as semanas, eram dois dias perdidos. Parei de trabalhar e caí em uma amarga depressão. Eu tinha 24 anos. Meses depois, minha mãe viu a entrevista de um médico na internet. Ele se chama Cícero Coimbra, é neurologista da Unifesp, e tinha uma teoria diferente sobre a minha doença - para ele, um simples tratamento com vitamina D poderia ser a solução. 
     Comecei o tratamento com uma megadose dessa vitamina: 50 mil UI (unidades internacionais) por dia, cerca de oitenta vezes mais do que a dose diária recomendada. Segundo Coimbra, pacientes com doenças autoimunes, como a esclerose múltipla, têm características genéticas que dificultam a absorção de vitamina D, daí a necessidade de doses tão grandes. 
     "Nossa expectativa é que em seis meses, quando você tiver atingido o efeito completo do tratamento, a doença entre em remissão permanente, sem novas crises", afirmou Coimbra. Era quase um milagre diante das outras perspectivas para essa "doença sem cura". Optei por abandonar as injeções e, com elas, meu sofrimento semanal. Mas havia um risco. Com uma dose tão alta, o corpo passa a absorver mais cálcio dos alimentos e os rins podem ficar comprometidos. Para lidar com isso, tenho que beber pelo menos 3 litros de água ou suco e abandonar o leite e seus derivados ricos em cálcio. Sacrifício bem pequeno para o benefício que colhi. O tratamento está dando muito certo. A doença estacionou e, há cinco anos só com a vitamina D, nunca mais tive sintoma algum. Meus resultados já impressionam os neurologistas que não acreditavam que isso seria possível. Imagine então o que pensam ao se depararem com casos de pacientes que tinham ficado cegos e recuperaram a visão, ou que tinham deixado de andar e levantaram da cadeira de rodas, só seguindo o tratamento da vitamina D. Perto disso, ter a "minha doença controlada" é muito pouco. 
     Essa é a minha história. E você talvez tenha algo em comum com ela. Um estudo feito em 2010 pela USP constatou que nada menos do que 77,4% dos paulistanos apresentam deficiência de vitamina D durante o inverno (no verão o número cai, mas continua altíssimo: 37,3%). Ou seja: é bem possível que você tenha falta de vitamina D - e nem saiba disso. "Provavelmente, esse é o problema médico mais comum no mundo hoje", diz o endocrinologista Michael Holick, da Universidade de Boston. Em Pequim, o problema afeta 89% das adolescentes - e 48% dos idosos. Na Índia, 84% das grávidas - e assustadores 96% dos bebês. Nos Estados Unidos, 29% dos adultos. Em Recife e Salvador, metade das mulheres. Os dados, que vêm de diversos estudos locais, já que não há uma pesquisa global que envolva grandes populações, variam bastante, mas todos apontam na mesma direção. O mundo está vivendo uma 'epidemia' de baixa vitamina D. E isso parece estar ligado a uma quantidade impressionante de doenças: de depressão a diabetes, de esclerose múltipla (como a minha) a câncer, da dor crônica a Alzheimer. Já vamos falar sobre isso. Mas antes: por que está faltando vitamina D? 

PORTAS FECHADAS 
     Tem algumas grandes diferenças entre a D e todas as outras vitaminas. Para começar, embora até seja possível absorvê-la pela comida, sua maior fonte, disparado, é o sol. Sim, a luz solar - aquela mesma que agride e envelhece a pele e pode causar câncer de pele, o mais comum entre mulheres e o segundo mais comum entre homens no Brasil. O raio ultravioleta B (UVB) do Sol, o mesmo que nos torra, desencadeia uma série de reações químicas que produzem vitamina D (veja no infográfico). 
     Na verdade, a vitamina D não é uma vitamina. Em 1931, o químico alemão Adolf Windaus, da Universidade de Göttingen, constatou que essa substância tinha a mesma estrutura de hormônios esteroides, como os hormônios sexuais. "Trata-se, na realidade, de um pré-hormônio", explica a farmacêutica e bioquímica Rita Sinigaglia, da Unifesp. Nos anos 90, com a descoberta de que todo o organismo possui receptores para a vitamina D, difundiu-se que ela seria uma classe em si mesma devido a ausência de um órgão alvo específico, como acontece com os hormônios. Não é vitamina, mas o nome pegou, e assim ficou. Um pré-hormônio para lá de importante. "Imagine um edifício comercial, um arranha-céu com milhares de portas, que são abertas por uma única chave: a vitamina D. Como ficarão essas salas que não podem ser abertas nem fechadas sem ela?", compara o médico Cícero Coimbra. Vitamina D é uma chave bioquímica que abre as portas de milhares de diferentes processos fundamentais para a vida. Se seus níveis forem altos, não faltarão chaves e as células funcionarão em plena atividade. Mas, com níveis baixos, várias dessas funções ficarão trancadas - salas fechadas. Já se sabe de pelo menos 2.500 funções celulares que não funcionam sem a D. 
     Por isso, sem vitamina D, a vida é impossível. Há muito tempo se sabe, por exemplo, que níveis baixos demais acabam com nossa capacidade de formar ossos. É que ossos são feitos de cálcio - e, para absorver o cálcio, nosso sistema digestivo precisa de vitamina D. "Sem ela, os dinossauros não teriam aguentado o peso do próprio corpo" , explica Ian Wishart no livro Vitamin D: Is This the Miracle Vitamin? ("Vitamina D: vitamina milagrosa? ", ainda sem versão em português). 
     Os humanos, desde sempre, mantiveram uma relação íntima com o Sol. Mas, quando a Revolução Industrial entrou em cena, no século 18, essa história tomou outro rumo. Abarrotadas de trabalhadores, as cidades começaram a se estreitar, com prédios cada vez mais próximos, ficando cheias de sombras. A fuligem da queima de carvão, além de poluir, dificultava a passagem dos raios solares. Crianças da Inglaterra e do norte da Europa começaram a apresentar deformações nos ossos, bolinhas na pele e má-formação dos dentes. Estavam sofrendo de uma  doença pouco conhecida até então: o raquitismo. 
     Em 1916, Harry Steenbock, da Universidade de Wisconsin, descobriu que a luz solar era a resposta para o raquitismo. Surgiu então a moda da helioterapia (terapia da exposição solar), que havia sido idealizada pela primeira vez pelo historiador grego Heródoto, no século I. Na Europa e nos EUA, hospitais construíram solários e varandas para banhos de sol. Nessa mesma época, outros pesquisadores queriam entender por que a Noruega, ao contrário dos países vizinhos, registrava baixos índices de raquitismo. O segredo estava na dieta; os noruegueses se alimentavam, principalmente, de peixes selvagens - e consumiam muito óleo de fígado de bacalhau. O bioquímico americano Elmer McCollum, também da Universidade de Wisconsin, analisou esses alimentos e neles encontrou uma nova substância, que batizou de vitamina D. Os médicos passaram a receitar óleo de fígado de bacalhau, alimento que contém uma quantidade considerável da substância (veja tabela). A indústria do leite começou a fortificar o produto com vitamina D, que pode ser sintetizada quimicamente ou retirada do sebo de ovelhas. 
     Mas, de lá para cá, aconteceram duas coisas. Primeiro, nosso estilo de vida passou a incluir cada vez menos sol. Usamos protetor solar, nos cobrimos mais, ficamos mais tempo em locais fechados. No Brasil, o consumo de protetor sextuplicou em menos de 15 anos. Por uma boa causa, claro: proteger a pele do câncer. Só que isso derruba a produção de vitamina D. Aplicar um filtro solar fator (FPS) 15 reduz em 98% a produção dessa vitamina. 
     A outra mudança foi na própria atmosfera terrestre. Um estudo feito na Índia comparou dois grupos de bebês, com idades entre 9 e 24 meses. Todos seguiam a mesma dieta (as mães eram vegetarianas, e os bebês se alimentavam de leite materno), eram da mesma etnia e tinham o mesmo nível socioeconômico. A única diferença estava no ar. Um grupo morava num bairro com alto nível de poluição atmosférica; o outro respirava ar mais puro. Os resultados foram claríssimos - e chocantes. Os bebês do bairro poluído tinham 12 nanogramas de vitamina D por mililitro de sangue. Os outros tinham 27, mais que o dobro. A poluição literalmente bloqueia a luz solar, dificultando seu trabalho. "Os compostos químicos que estão no ar absorvem parte dos raios UVB", explica Lilian Cuppari, pesquisadora da Unifesp e uma das autoras do estudo sobre a falta de vitamina D no Brasil. Talvez nada ilustre melhor a importância do sol do que a história recente do Irã. Até a Revolução Iraniana, o país era governado pelo xá Reza Pahlavi, amigo dos Estados Unidos. Tudo era bem ocidentalizado, inclusive as roupas das pessoas. Em 1979, o aiatolá Khomeini tomou o poder, instaurou um governo islâmico, e as mulheres passaram a usar trajes tradicionais e recatados, que cobrem quase todo o corpo. O efeito sobre a saúde foi imediato - e fortíssimo. Entre 1989 e 2006, o número de casos de esclerose múltipla cresceu 800% no país (como mostrou um estudo realizado em 2013 pela Universidade de Oxford). 
     Até a década de 1990, acreditava-se que a única função da vitamina D era contribuir para a saúde dos ossos. Nos últimos anos, pipocaram novos estudos (foram mais de 2 mil só em 2014) e hoje sabe-se que ela age em diversas partes do corpo: incluindo cérebro, coração, estômago e pulmões. Ela retarda ou ajuda a evitar o aparecimento de Alzheimer e outras doenças degenerativas, alivia a asma, evita demência, esquizofrenia e bipolaridade e reduz os riscos de impotência sexual. Doenças cardiovasculares e infecciosas (como a tuberculose), diabetes, autismo e doenças autoimunes (psoríase, artrite reumatoide, lúpus, entre outras) estão relacionadas à falta de vitamina D. Um estudo da pediatra e neonatologista americana Carol Wagner, da Universidade da Carolina do Sul, mostrou ainda que a vitamina D reduz em 50% a possibilidade de complicações na gravidez. Ela interfere até no humor. Um artigo publicado no British Journal of Psychiatry analisou os resultados de testes com 30 mil pessoas e concluiu que há uma relação entre falta de vitamina D e depressão. 
     Sem falar no câncer. Há pesquisas mostrando que a vitamina D desacelera a progressão do câncer de mama e de próstata e pode até prevenir alguns tipos da doença. Também há indícios de que o mesmo  acontece com câncer de cólon, pâncreas, cérebro, bexiga, rins e leucemia. "A vitamina D previne o câncer da mesma forma que a vitamina C previne o escorbuto (doença que causa hemorragias bucais e perda dos dentes)", empolga-se o médico americano Cedric Garland, da Universidade da Califórnia. Para Garland, que participou de dezenas de estudos sobre o tema, níveis corretos de vitamina D poderiam evitar até 80% dos casos de câncer. 
     Apesar de tantas evidências, a vitamina D ainda é alvo de muita polêmica. A maior parte das sociedades médicas do mundo e dos órgãos responsáveis por definir as diretrizes para os profissionais de saúde continua recomendando cuidado com o sol e poucos reconhecem tratamento que sigo fazendo. Por quê? 

A VITAMINA DA DISCÓRDIA 
     Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia "o único benefício reconhecidamente ligado à vitamina D é sua relação com a saúde óssea". Assim como a maioria dos dermatologistas do mundo, ela não recomenda a exposição aos raios solares. "Caso a pessoa tenha carência de vitamina D, sugerimos que tome isso de forma exógena, por meio de suplementos, em função dos riscos envolvidos", diz a dermatologista Flávia Ravelli, da SBD. Alguns estudos parecem dar razão aos céticos. Uma revisão de mais de 400 estudos realizada na França concluiu que a suplementação da vitamina não trouxe benefícios significativos na diminuição do risco de doença cardiovascular, câncer nem fraturas. Segundo os autores, a deficiência de vitamina D é consequência de doenças, não sua causa. Quem defende a vitamina diz que a maioria dos estudos usou doses muito baixas, de 2 mil UI por dia, e que seria preciso tomar pelo menos 4.500 UI para ter algum efeito na prevenção de doenças. Como afirma Michael Holick em um de seus livros sobre a vitamina D, "se o corpo pudesse declarar o método preferido para a obtenção da sua dose diária de vitamina D, ele com certeza aplaudiria de pé a opção do sol em vez de um frasco de pílulas". Afinal, esse inteligente processo de autorregulação não deve ter sido aperfeiçoado pelo nosso organismo à toa. Outro ponto importante é que o corpo não se intoxica com a vitamina D gerada pela luz do Sol, mas pode se intoxicar com a vitamina D proveniente da suplementação (é o risco do excesso de cálcio que eu preciso controlar no meu tratamento).
     A maioria dos oncologistas, neurologistas, psiquiatras e outros médicos que poderiam se beneficiar da vitamina D nem sabe de seu potencial. Por ser uma substância encontrada na natureza, ela não pode ser patenteada, e, portanto, pode-se imaginar que não atraia a atenção dos grandes laboratórios farmacêuticos, maiores patrocinadores das pesquisas e dos congressos médicos. 
     Mesmo não sendo aceito pela Academia Brasileira de Neurologia, que pede por mais estudos, o protocolo da vitamina D para doenças autoimunes desenvolvido por Cícero Coimbra se mantém principalmente pela popularidade entre os pacientes. Ele já tratou mais de 2,5 mil pessoas com esclerose múltipla desde 2002, bem como pacientes com lúpus, artrite reumatoide, psoríase, vitiligo e várias outras doenças. O sucesso fez com que outros médicos o procurassem para aprender o protocolo, e hoje mais de 20 profissionais espalhados pelo Brasil e outros no exterior (Argentina, Peru, Itália, Portugal) já aplicam o tratamento. Há relatos de outras experiências usando doses altas de vitamina D pelo mundo, geralmente para pesquisas pontuais. Mas nada se compara à consistência do que vem sendo feito por aqui. 
     Vários pacientes vem tendo bons resultados. Como Wagner, que foi diagnosticado com esclerose múltipla em 2007. Começou a fazer o tratamento convencional, teve muitos efeitos colaterais e nenhuma evolução, e em 2013 foi parar numa cadeira de rodas. Começou um tratamento com vitamina D e voltou a andar. Rafhael estava havia sete anos sem fazer caminhadas. Com quatro meses de tratamento, já conseguia jogar bola com os filhos. Juliana, que tinha dores terríveis por causa da artrite reumatoide e mal conseguia cuidar do filho, hoje coloca diariamente no Instagram fotos em posturas de ioga quase impossíveis. Fernanda, que sofre de dor crônica, começou a tomar a vitamina há sete meses, e melhorou. Átila, que tinha pneumonia e bronquite asmática desde a infância, também. Mesmo caso de Damaris e Maria Cecília - que tinham casos graves de lúpus (uma doença autoimune que afeta pele, articulações e rins) e melhoraram depois de começar tratamento com a vitamina. Há dezenas de relatos como esses. 
     De minha parte não há nenhuma dúvida. Tive alta e nunca mais apresentei qualquer sintoma da doença. E raramente tenho gripes ou resfriados, antes tão comuns. Não sei quando (ou se) deixarei de tomar as altas doses de vitamina D. Mas elas certamente são melhores que as injeções. Hoje até existem tratamentos à base de remédios orais, com chances de melhores resultados. Mas ainda possuem muitos efeitos colaterais, além de custarem muito caro. 
     No fim da história, se eu pudesse dar uma só dica sobre o futuro seria esta: tome um pouco de sol. Não muito: 15 minutos, sem protetor solar, bastam para a maioria das pessoas (sempre tendo o cuidado de não passar do ponto e ficar vermelho, o que é perigoso). Quanto maior a região do corpo exposta, maior será a produção. Não precisa expor o rosto - que é muito sensível e tem uma área relativamente pequena, portanto produz pouca vitamina D. Tomar sol nos braços e nas pernas já está bom. "Esperar o ônibus no ponto sem protetor já é capaz de elevar significativamente as taxas", explica a médica Lilian Cuppari. 
     Cada vez mais gente concorda com isso. O médico Walter Feldman, por exemplo. Ex-deputado federal, ele apresentou um projeto de lei para garantir aos trabalhadores, presos, estudantes e pacientes de hospitais, que passam mais de seis horas ininterruptas em ambientes fechados, o direito de tirar 15 minutos de descanso, antes das 16h, para tomar sol. Em 2010, o Ministério da Saúde americano aumentou a dose diária recomendada para pessoas saudáveis, que passou de 400 para 600 UI (no caso de idosos, 800 UI). Em 2013, a Europa fez uma mudança similar. Ainda é muito pouco - basta lembrar que, em apenas 15 minutos de exposição ao sol, podemos produzir mais de 10 mil UI. 
     Diferenças à parte, o importante mesmo é pegar o caminho de volta. Por mais que tenhamos nos esquecido disso nas últimas décadas, entocados em prédios, lambuzados de protetor solar, o Sol é o guia da nossa vida. Talvez seja hora de retomar essa antiga amizade.  

O SOL NA COMIDA 
Além do Sol (nosso corpo produz 10 mil UI da vitamina a cada 15 minutos de exposição a ele), a vitamina D também pode ser obtida por meio de certos alimentos. Veja os principais;
Óleo de fígado de bacalhau: 1 colher de sopa – 900 UI
Salmão: 1 porção (85 gramas) – 447 UI
Sardinha: 1 porção (suas sardinhas) – 46 UI
Atum em lata: 1 porção (85 gramas) –154 UI
Fígado: 1 porção (85 gramas)  – 42 UI
Ovo: 1 ovo – 40 UI
Cereal fortificado com vitamina D: 1 tigela – 40 UI
Leite fortificado com vitamina D:  1 copo (300 ml) – 115 a 124 UI

QUANTIDADE RECOMENDADA POR DIA: 600 UI (unidades internacionais). [*Quantidade recomendada pelo Ministério da Saúde dos EUA e pela maioria dos médicos. Para a Grassroots Health, defensora da vitamina D, seriam necessárias doses diárias de 4 mil a 5 mil UIs.]

EFEITOS NO ORGANISMO
A vitamina D está envolvida em vários processos essenciais para o funcionamento do corpo.
1- NOS OSSOS: RESISTÊNCIA. A vitamina D é usada como matéria-prima pelos osteoblastos e osteoclastos, que fabricam o tecido ósseo e eliminam partes danificadas. Sem ela, os ossos ficam quebradiços ou malformados.
2- NO CORAÇÃO: LIMPEZA. A vitamina D aparentemente aumenta a produção de renina plasmática, substância química ligada ao controle da hipertensão arterial (e, consequentemente, as doenças cardíacas).
3- NO CÉREBRO: ATIVIDADE. Neurônios de certas regiões, como o hipocampo e o córtex cingulado, supostamente usam a vitamina D para produzir proteínas. Há estudos que relacionam a falta dela com Alzheimer, autismo e depressão.
4- NO SISTEMA IMUNOLÓGICO: CONTROLE. A vitamina D parece fazer efeito sobre algumas doenças autoimunes, como esclerose e asma. Nesse tipo de doença, o sistema imunológico fica hiperativo - e ataca as células do próprio organismo.
5- NO CÂNCER: PROTEÇÃO. Há pesquisas que relacionam altos níveis de vitamina D com menor incidência de câncer, e um estudo mostrando o efeito dela sobre células tumorais.
COMO O SOL VIRA VITAMINA
Nosso corpo faz algo que parece mágica: sintetiza um elemento químico usando apenas luz.
1- O SOL - Os raios ultravioleta B penetram na pele, e reagem com uma substância presente nela: o 7-Dehidrocolesterol, que se transforma em vitamina D3.
2- O FÍGADO - A vitamina cai na corrente sanguínea e vai até o fígado, onde é transformada em outra coisa: calcifediol.
3- OS RINS - O calcifediol vai para os rins, onde é convertido em calcitriol, a forma ativa da vitamina D. Ela está pronta - e é distribuída pelo corpo por meio do sangue.

77% das pessoas em São Paulo, segundo um estudo da USP, têm algum grau de deficiência de vitamina D durante o inverno.

QUANTO SOL TOMAR?
Não é preciso, nem aconselhável, ficar torrando. Alguns minutos bastam:

ALTAS LATITUDES
INVERNO: PELE ESCURA – Não disponível  ; PELE CLARA – Não disponível
VERÃO: PELE ESCURA – 30-40 MIN. ; PELE CLARA –  5-10 MIN.

MÉDIAS LATITUDES
INVERNO: PELE ESCURA – 40-60 MIN.  ; PELE CLARA – 10-15 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 25-30 MIN. ; PELE CLARA –  1-8 MIN.

LATITUDE TROPICAL
INVERNO: PELE ESCURA – 30-45 MIN.  ; PELE CLARA – 5-10 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 15-20 MIN. ; PELE CLARA –  1-5 MIN.

MÉDIAS LATITUDES (abaixo do equador)
INVERNO: PELE ESCURA – 40-60 MIN.  ; PELE CLARA – 10-15 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 25-30 MIN. ; PELE CLARA –  1-8 MIN.

ALTAS LATITUDES (abaixo do equador)
INVERNO: PELE ESCURA – Não disponível  ; PELE CLARA – Não disponível
VERÃO: PELE ESCURA – 30-40 MIN. ; PELE CLARA –  5-10 MIN.

Fontes: Livro The UV Advantage (Michael Holick) e revista New Scientist.

VOCÊ ESTÁ NO GRUPO DE RISCO?
Responda a estas perguntas e saiba se você tem propensão à falta de vitamina D
Sua pele é morena? (sim = 3 pontos)
Você é obeso? (sim = 3 pontos)
Sente fadiga muscular, dor nos ossos ou nas juntas? (sim = 2 pontos)
Tem mais de 60 anos? (sim = 2 pontos)
Mora ao sul de Montevidéu ou ao norte de Los Angeles? (em latitudes maiores do que 35 graus) (sim = 2 pontos)
Usa protetor solar antes de tomar sol? (sim = 2 pontos)
Raramente fica ao ar livre entre 10h e 15h? (sim = 2 pontos)
Não come peixe nem toma vitamina D em cápsulas? (sim = 1 ponto)
Está grávida? (sim = 2 pontos)
Tem aids, doenças no fígado, rins ou tireoide? (sim = 3 pontos)
Usa algum medicamento que atrapalha a absorção ou o metabolismo da vitamina D? (como o emagrecedor Xenical, o anti-epilético Dilantin, e medicamentos contra tuberculose) (sim = 1 ponto)
Fuma? (sim = 1 ponto)
Protege-se sempre do sol com sombrinha ou roupas? (sim = 2 pontos)
Tirou férias no último verão? (sim = -1ponto)

RESULTADO
0 A 2 PONTOS RISCO BAIXO
3 A 5 ALTO
6 A 8 MUITO ALTO
9 OU MAIS EXTREMO